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Adeus ao Mestre Tchê. PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Tuesday, 28 April 2015 16:27

E aí, pessoal? Tudo bem?

 

Estava com a coluna deste mês pronta, e o arquivo já havia sido enviado para publicação, mas uma notícia bastante triste, que pegou a todos nós que amamos o kartismo como um soco do Mike Tyson no fígado, mudou tudo: o falecimento do mestre Lucio Pascual Gascon, o “Tchê”. Mestre dos motores 2 tempos de válvula rotativa, preparador dos maiores campeões de kart que nós produzimos nos anos 60 e 70 e conhecido mundialmente por sua parceria com o ídolo Ayrton Senna durante todo o período em que ele competiu no kart, ou seja, de 1973 a 1982 (ano em que já estava na F-Ford 2000 Européia, mas disputou e venceu o Panamericano de Kart).

 

O “Seu” Lucio passou para a eternidade no dia 25 de abril aos 78 anos de idade, em decorrência de um pequeno infarto sofrido dois dias antes. Ele precisava de um cateterismo, mas como já tinha três pontes de safena, não houve condição de fazer a intervenção e ele teve uma insuficiência cardiorrespiratória. Faleceu quatro dias após o aniversário de 30 anos da primeira vitória de Ayrton Senna na Fórmula 1, quando ele venceu o chuvoso GP de Portugal de 1985 com a maravilhosa Lotus Renault 97T preta e dourada.

 

'Seo' Tchê, em 2011. Não era apenas trabalho ou um modo de vida... era uma paixão.

 

O Tchê veio da Espanha para o Brasil em 1960, tendo como bagagem um curso técnico na área de ferramentaria. Ele logo foi recrutado por outro imigrante, o lendário italiano Silvano Pozzi, e assim começou a trabalhar na preparação de motores, carburadores e também na fabricação de peças de competições.

 

São incontáveis os títulos dos motores e carburadores preparados pelo Tchê. Entre os pilotos que correram com sua preparação nos anos 60 e 70, podemos destacar os irmãos Fittipaldi, os irmãos Giaffone, Waltinho Travaglini, Tite Catapani, Manfredo Horschauer, Alex Dias Ribeiro e seu irmão Fernando, Roberto Pupo Moreno, Chico Serra, Mauricio Gugelmin etc. Mais recentemente, Sérgio Jimenez e Nelsinho Piquet usaram seus motores na Fórmula A, que utilizava equipamentos importados 100 cc de válvula rotativa, na época idênticos aos utilizados nos principais campeonatos de kart do mundo.

 

Para que vocês tenham uma idéia da competência dele, no ano 2000 o piloto Sérgio Jimenez disputou o Campeonato Europeu de Kart, na categoria Fórmula A, com a equipe brasileira da Kart Mini. O responsável pela preparação de seu chassis era o Luiz Sérgio Ferraz dos Santos, o “Zé Bolão”. Conta-me o Zé que o preparador de motores oficial da equipe Mini era o Roland Marechal, um dos “bambambans” do kart mundial, sendo o Tchê o preparador dos motores de treino, aqueles que os pilotos usavam apenas para moer, antes de colocar os canhões para classificar e correr.

 

Uma foto histórica do 'seo' Tchê com alguns de seus pupilos. Entre eles, Waltinho Travaglini e Dionisio Pastore.

 

Pois bem, numa das etapas do Europeu, o Jimenez estava treinando com os seus motores de treino, feitos pelo Tchê, e colocou o “canhão” do Marechal para acertar o kart para a tomada... O seu tempo piorou. Voltaram para o motor do Tchê e ele fez a pole! Quando o Marechal viu que o Jimenez tinha feito a pole com outro motor que não o seu, criou-se uma briga enorme, como vocês podem imaginar. Já naquela época, o espanhol era tido por muitos como ultrapassado, como alguém que tinha parado no tempo, mas os resultados provam o contrário.

 

Mas o “Seu” Lucio não foi somente um preparador de motores e carburadores... Ele também foi um fabricante! Projetou e construiu o motor Tecmo, bastante similar aos Parilla “coquinho” da década de 70, com válvula rotativa. Este motor era bastante competitivo, superior aos Riomar V4 da época, mas não foi homologado pela CBA, que exigiu uma quantidade absurda de motores construídos, coisa que um pequeno fabricante não teria a menor condição de investir. Desta forma, seu filho Alfredo, venceu o Brasileiro de Kart de 1990 em Goiânia com um motor Riomar V4, quando poderia tranquilamente ter levado o caneco com um motor fabricado pro seu pai. Tchê fabricava também os famosos escapamentos Meyba, que ganharam inúmeras provas em todo o Brasil e tinha o projeto de um carburador revolucionário, que teve um protótipo fabricado e foi de cara muito rápido, mas que a exemplo do motor Tecmo, não conseguiu homologação.

 

Com Ayrton Senna, em 1974, a parceria mais famosa e mais vitoriosa de 'seo' Tchê. Sr. Milton Silva é o outro na foto.

 

Para quem o conheceu e pôde conversar pelo menos meia hora com o espanhol, fica claro que ele tinha muitas mágoas, principalmente por conta de seus projetos que foram boicotados pelos grandes fabricantes e pela CBA. Seu relacionamento com a família Senna da Silva tampouco era dos melhores...

 

O Tchê tinha um acervo com várias peças históricas, com muito material do Ayrton Senna, como cartas escritas pelo “42” a ele, capacetes e motores. Ele tinha predileção por um motor em especial: o “Vingador”, um Parilla TT22 com o qual venceram a Corrida dos Campeões de 1976 em cima de Chico Serra. A história desta vitória é interessante: Chico, 3 anos mais velho que Ayrton, era a grande estrela em ascensão do kart na época, corria numa categoria superior à de Ayrton e esta seria a sua prova de despedida no kart. Era tido como alguém quase invencível na época.

 

Chico havia deixado de competir com os motores de Tchê havia pouco tempo, e Ayrton era tratado jocosamente por ele e por outros pilotos como o “Vaca Brava”. Havia então um forte desejo da dupla de demonstrar aos seus detratores que os motores de Tchê ainda eram os mais competitivos e que o “42” não era apenas um “Vaca Brava”, mas alguém que poderia vencer qualquer piloto da época. E assim aconteceu! Para aumentar ainda mais o sabor da vitória, houve mais um detalhe nesta corrida: Chico era conhecido por dar aquela pisadinha no freio antes da aproximação de uma curva para que o piloto que viesse grudado nele tivesse que desviar, saindo da pista. Avisado por Tchê, Ayrton ficou esperando a tal da freadinha, que aconteceu na famosa Curva da Esplanada do Kartódromo de Interlagos, e o ultrapassou por fora.

 

Ayrton Senna tinha um respeito e uma admiração por 'seo' Tchê que causava inveja em muita gente...

 

Na próxima freada forte, que era a da Curva da Balança, Chico tentou bater na traseira de Ayrton, mas este freava tão dentro que o tiro acabou saindo pela culatra e Chico passou reto. Eles iriam se reconciliar 2 anos depois, no Mundial de Kart de Le Mans, quando Ayrton foi premiado como o melhor estreante e ganhou uma televisão de 14 polegadas, que presenteou a Chico. O “Seu” Lucio tava nesta corrida, e tinha certeza que iria levar a televisão pra casa, mas voltou chupando o dedo.

 

Tive a oportunidade e o privilégio de conviver mais com o Tchê a partir de 2011, com a criação do Vintage Kart Brasil. Viajamos juntos algumas vezes, e ele tinha um ótimo papo, com histórias que prendiam a sua atenção. Seus olhos continuavam atentos aos menores detalhes, e ele era capaz de observar rapidamente um kart e dizer o que estava montado de forma incorreta e sugerir modificações que melhorariam o seu rendimento.

 

No Vintage Kart em 2013, Sentar e tirar uma foto com ele foi algo muito especial.

 

Dos quatro filhos que teve, três seguiram o caminho do pai e trabalham e bem com karts: Alfredo e Fernando tocam a oficina de motores e Dudu tem uma equipe.

 

O “Seu” Lucio não enriqueceu com o kart... Aos 78 anos de idade, ainda pegava diariamente sua Palio Weekend branca com bastante uso e ia do bairro da Saúde para Interlagos, para trabalhar em sua oficina de motores. Nem a dificuldade de locomoção, com a necessidade de usar uma bengala após fraturar um pé há três anos, o impedia de andar para onde quisesse.

 

Nos mês passado, encontrei-o pela penúltima vez... Eu estava no Velocult, no Conjunto Nacional da Avenida Paulista, quando vejo aquele senhor vindo andando lentamente com a sua bengala. Perguntei a ele: “Quem trouxe o senhor aqui?” Ele me respondeu: “Eu vim sozinho. Peguei um ônibus, um metrô e cheguei aqui. Foi rápido.” “Mas o senhor tem carona pra ir embora, né?” “No, non precisa... Eu vou pegar o metrô e chego rápido em caxa”. “Então eu vou dar carona pro senhor e não tem discussão”, encerrei a conversa. Ele foi um dos homenageados da noite, e a cerimônia terminou umas onze e meia, mais ou menos. Enquanto o aguardava se despedir dos amigos que não o viam há bastante tempo, um deles lhe perguntou: “Este rapaz é seu filho?” “No, ele non é meu filho solo porque a sua mãe non quisse”, respondeu aquele velho sem vergonha!

 

Em março deste ano, no Velocult, uma justa homenagem feita por Paulo Solariz.

 

Nos vimos pela última vez em Limeira, duas semanas depois. Era a primeira etapa do Campeonato de Karts Históricos e da Fast 90’s, e ele, como sempre, foi nos prestigiar. Não tivemos tempo de conversar muito, o que é uma pena! Eu estava tão ocupado em acertar o meu kart, que mal saí do meu Box. Ganhei a etapa, mas perdi a oportunidade de desfrutar um pouco mais da companhia daquele homem fora de série. Naquele final de semana, aconteceu algo especial: o seu netinho de 6 anos de idade, filho do Alfredo, andou de kart pela primeira vez, e dava pra perceber que o espanhol estava todo orgulhoso.

 

Estive no seu velório, no Cemitério da Vila Alpina, no dia 26 de abril. Reencontrei diversos amigos, pilotos, ex-pilotos, preparadores e ex-preparadores, que foram prestar a sua última homenagem ao Tchê, todos muito emocionados e com belíssimas recordações dele. Uma dessas pessoas era o Catroque, meu primeiro e único preparador na época em que competi quando era moleque. Estávamos eu e o Catroque conversando, quando chegou o Alfredo... O Catroque lhe falou: “É... Esse grande professor partiu. Quem teve a oportunidade de aprender com ele, aprendeu. Quem não aprendeu, não aprende mais.” Depois emendou para o Alfredo: “Não sei se você lembra do casamento do meu irmão, você estava lá, mas era um garoto ainda. O meu irmão estava todo preocupado, porque estava numa situação financeira muito difícil... O seu pai apareceu lá com um maço de dinheiro e colocou o envelope no bolso do meu irmão. Até hoje ele lembra disso, pois foi o que o ajudou no começo da vida de casado.”

 

Eu sempre lembrarei dele com muito carinho, respeito e admiração.

 

Quero reproduzir aqui um emocionante texto do Guga Ribas sobre o falecimento do Tchê, que penso sintetizar bastante quem ele foi e o que representava:

 

“O fim de uma era!

 

Hoje o kartismo fecha definitivamente um capítulo de sua história.

 

É com imenso pesar que escrevo esse texto, para dizer que o capitulo dos três amigos, Silvano Pozzi, ou simplesmente Silvano, Rino Genevese, ou simplesmente “Véio”, e Lúcio Pascual Gascon, conhecido como Tchê, se encerra. Tchê nos deixou para se juntar aos seus amigos de tantos anos e de tantas histórias.

 

A vida terrena fica mais pobre e o céu se enriquece.

 

Convivi pouco com o Silvano, mas o pouco que convivi, e o muito que o Rino me contou dele, foi suficiente para conhecê-lo bastante bem, e ter a certeza de sua genialidade. Gostaria de ter tido a oportunidade de ter aprendido mais com ele.

 

Já com o Rino, nossa! Foram muitos e muitos anos de convivência, amizade, brigas, bengaladas, derrotas, muitas vitórias, mas acima de tudo, de muito carinho e amor (amor de pai) e admiração mútua. Meu Deus, como aprendi com aquele velho rabugento. Vocês não podem imaginar quanta saudade sinto do meu segundo pai.

 

 

E agora o Tchê. O espanhol foi um dos meus primeiros preparadores. Eu era adolescente, e para falar a verdade, tinha uma enorme dificuldade de entender o que ele dizia naquela época, pelo seu sotaque carregadíssimo. Chegava a ser engraçado.

 

Ficamos quase 30 anos sem nos encontrarmos depois que parei de correr de kart, mas com o falecimento do Rino, ele apareceu no velório para se despedir do amigo, e nos reencontramos. A emoção do momento que já era enorme, ficou insustentável e ambos fomos às lágrimas. Uma mistura de dor pela partida de nosso amigo queridíssimo e a surpresa deliciosa de um reencontro depois de tantos anos. Quis o destino ainda que nos reencontrássemos pela última vez, também com muita emoção, mais aí sim, um momento memorável de muita alegria.

 

Foi no último final de semana do mês de Março, em um evento dos kartistas históricos em Limeira - SP, que reuniu grandes nomes da história do kartismo brasileiro, e ele não podia faltar. Ficamos no mesmo hotel, jantamos juntos, relembramos um sem número de episódios que vivemos juntos. Falamos do Rino, do Silvano, de como eram amigos, das picuinhas, manias e do jeito de cada um, e da saudade que nós sentíamos deles.

 

Campeonato Brasileiro de Kart no Guará (DF) em 1977. 'Seo' Tchê ao lado de Zé David e Ayrton Senna.

 

O mais legal, foi ter visto seu netinho de 5 ou 6 anos estreando no kart sob seu olhar atento. Três gerações de sua família numa pista de kart ao mesmo tempo. Absolutamente inédito e incrível!

 

Pois é Tche, agora você deve estar aí em cima com seus dois amigos matando a saudade. Nós ficamos definitivamente órfãos, extremamente saudosos, e com a certeza de estamos assistindo o fim de uma era do kartismo. Uma era riquíssima, cheia de talentos e de pessoas boas.

 

Esses três homens, três imigrantes, três gênios da mecânica, e fundamentalmente três pessoas de extremo caráter, fizeram a história do nosso kartismo. De sua origem até hoje. A esses três monstros sagrados, meu mais profundo agradecimento. E tenham certeza de que todas as vezes que eu entrar em um kartódromo me curvarei em reverencia a esse trio a quem tanto devo.

 

Ao lado de um dos grandes kartistas do país, Henri Strasser, em 2011.

 

Mas a vida é assim mesmo, e só tenho a agradecer a Deus pela dádiva de ter conhecido e convivido com essas três lendas do nosso esporte, além de três pessoas absolutamente maravilhosas.

 

Infelizmente não tive tempo de ir ao enterro, mas deixo aqui à família, os meus mais profundos e sinceros sentimentos, e meu mais forte e carinhoso abraço.

 

Fiquem com Deus

 

Guga Ribas”

 

Não, o Tchê não enriqueceu com o kart... Foi o kart que enriqueceu e muito com a sua presença e agora fica infinitamente mais pobre com a sua partida!

 

Carta de Ayrton Senna a Tchê agradecendo-lhe por tudo o que ensinou e fez por ele: www.youtube.com/watch?t=90&v=RTdCXeZjRDY

 

Entrevista do Nobres do Grid com o Tchê: http://www.nobresdogrid.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=357:entrevista-seo-tche&catid=56:nobres-do-grid-entrevista&Itemid=93

 

Até o mês que vem!

 

Abraços a todos,

 

Rodrigo Bernardes

Last Updated ( Thursday, 30 April 2015 16:05 )