Nas últimas semanas tem se falado muito neste filme ‘Rush’ , que fala de uma coisa que não existiu: a rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt e a disputa pelo título de 1976. Entre classificar o filme entre ficção e comédia, preferi chamar de comédia porque só mesmo rindo do sujeito que teve a ideia de fazer o filme nestes moldes. Ou foi falta de pesquisa, ou foi falta de conhecimento ou foi mesmo falta do que fazer. Eu ainda era muito pequeno quando a temporada de 1976 aconteceu. Já havia transmissão pela televisão e era possível se acompanhar o campeonato mundial de Fórmula 1 ao vivo pela mesma emissora que hoje transmite as corridas. Niki Lauda era o campeão do mundo, depois de desperdiçar a chance de ser campeão em 1974, por excesso de vontade e falta de cuidado com o equipamento (cravou 9 poles em 16 provas, mas com 8 abandonos por quebra, deixou a disputa do título para Clay Regazzoni e Emerson Fittipaldi), em 1975 não repetiu os erros e mostrou que era uma estrela com condições de rivalizar-se com Emerson Fittipaldi. A temporada de 1976 poderia ser uma continuidade da disputa de 1975 (se o sem noção do escritor, do roteirista, do diretor do estúdio ou até da mulher do cafezinho soubessem o que é Fórmula 1, o filme seria baseado na temporada deste ano, e não na de 1976), apesar de todo o apelo dramático que foi o acidente que quase tirou a vida de Niki Lauda em Nurburgring e que acabou condenando o circuito a perder a etapa do mundial para o ano seguinte e só retornar com o circuitinho que fizeram aí – que nem é tão ruim, tem coisas piores – para atender as exigências do bom velhinho. Na imagem do filme, o Lauda tá bem 'meia boca', mas o ator que acharam pra fazer o Hunt ficou muito parecido... O problema é que o Fittipaldi decidiu embarcar na canoa furada da família, apostando as fichas, a grana, a reputação e a possibilidade real de conquistar um tricampeonato assumindo o volante do FD04, que tem as iniciais dos sobrenomes Fittipaldi e Divila, mas que podem ser entendidas como... é! Para quem era adulto, como meu pai, eu me lembro de, alguns anos depois, ele falando coisas como: que raiva ver aquele cabeludo marcar a pole com ‘o carro do Emerson’! Deve ter dado raiva mesmo. Mais ainda quando ele – e qualquer um com o mínimo discernimento sobre o automobilismo da época – dizia que o Lauda não tinha adversários. O único capaz de vencê-lo, decidira “não correr”. A temporada de 1976 teve 16 corridas. Nas 7 primeiras Niki Lauda terminou TODAS no pódio! Foram quatro vitórias (Brasil, África do Sul, Bélgica e Mônaco), dois segundos lugares (Estados Unidos Oeste e Espanha) e um terceiro lugar na Suécia. Depois de uma quebra de virabrequim na França e uma vitória herdada pela desclassificação de Hunt por ter trocado o carro depois acidente da primeira largada onde o inglês também passaria em branco, por punição. Na abertura da temporada, em Interlagos, ainda correndo com os modelos de 1975, Lauda deixou Hunt pra trás já na largada. Depois do carro trocado, nesta prova, assim como foi na corrida em Kayalami, houve uma disputa direta em corrida entre Lauda e Hunt. Daí achar que duas corridas é disputa pra se fazer um filme? Alguém devia passar para este pessoal de ‘Roliúde’ umas corridas entre Senna e Prost de 88 a 90, Piquet e Mansell entre 86 e 87, Senna e Mansell em 91... estas sim foram disputas, rivalidades de verdade que ultrapassaram os limites do asfalto. Para que você, leitor, tenha uma ideia, após nove das dezesseis etapas da temporada a pontuação dos quatro primeiros do campeonato era: Lauda com 61 pontos; Scheckter com 30; Depallier com 26 e Hunt com 24. A pontuação era 9 pontos para o vencedor, 6 para o segundo, 4 para o terceiro, 3 para o quarto, 2 para o quinto e 1 para o sexto. Longe dessa ‘farra’ dos dias de hoje. Niki Lauda tinha mais do dobro dos pontos do segundo colocado e o campeonato caminhava para um encerramento precoce, que poderia ser na Holanda, 12ª etapa do campeonato. Em Mônaco, já com o carro do ano, Lauda conquistava a quarta vitória em seis etapas disputadas. O título estava a caminho. A 10ª corrida do ano foi em Nurburgring, com seus 22,8 Km, 175 curvas e voltas com mais de 7 minutos de duração. Apesar de James Hunt ter feito a pole position, foi com os tempos da sexta-feira, uma vez que choveu muito no sábado. Na corrida, a pista começou molhada, mas secou logo e ao fim da primeira volta, os carros da frente trocaram pneus. Hunt liderava depois de uma saída de pista de Regazzoni, e Lauda, que não gostava de correr em Nurburgring e tinha um acidente sofrido em 73, na BRM por lá parecia destinado a começar a administrar a enorme vantagem que tinha sobre os adversários na disputa do título. Contudo, na segunda volta, na curva Bergwerk, a Ferrari guina estranhamente para a direita depois de tangenciar a parte interna da curva. Bate no guard rail na saída da mesma, rodando e logo incendeia-se, sendo ainda atingido pelo Surtees de Brett Lunger. Os carros que foram chegando foram parando e os pilotos descendo para socorrer Lauda. Arturo Merzário, Guy Edwards, Harald Ertl além do próprio Lunger. Depois chegaram Emerson Fittipaldi e Hans Stuck. Niki Lauda ficou sob as chamas por quase um minuto até ser retirado do carro. Lauda não gostava de correr em Nurburgring e uma falha mecânica pode ter sido a causa do acidente. Ele foi salvo pelos pilotos. Depois da interrupção da prova, uma nova largada foi dada e James Hunt venceu, iniciando uma sequência de bons resultados enquanto Lauda lutava para sobreviver às graves consequências do seu acidente. O piloto chegou a receber a extrema unção – sacramento da religião católica, dado normalmente a pessoas à beira da morte como purificação dos pecados. Apenas a partir daí foi que Hunt conseguiu recuperar a maior parte da diferença, com Lauda fora das pistas. Contudo, o austríaco não pensava na hipótese de perder o título e voltou pra equipe ainda usando ataduras sobre a pele. Mas era claro que ele estava debilitado. Tanto que marcou apenas sete pontos, três dos quais na corrida de retorno, o GP da Itália, seis semanas depois do acidente. As Ferrari não “se acharam” em Mosport Park e terminaram longe do pódio em mais uma vitória de James Hunt, que voltaria a vencer em Watkins Glen, mas com Niki Lauda em terceiro, indo os dois para o Japão, local da prova de encerramento do campeonato, com Lauda ainda três pontos na frente de Hunt. As marcas do acidente Lauda carrega até hoje. Apenas seis semanas depois do acidente, estava alinhando em Monza. A estreia do circuito de Fuji foi crítica. Nos treinos correu tudo bem, mas choveu muito no dia da corrida, tanto que a melhor volta da prova foi a de Masahiro Hasemi, ao volante de um Kojima(?)! Hunt largou em segundo, ao lado de Mário Andretti. Lauda largou em terceiro, mas diante da condição da pista, completamente alagada, abandonou na segunda volta, recusando-se a permanecer na pista naquelas condições, enfurecendo o ‘Comendatore’. Ao sair do carro, disparou: “minha vida vale mais que um título”. Enquanto isso, Hunt, que tomou a ponta na largada, seguia liderando, condição que lhe daria o título. Com Lauda fora da prova, bastava para Hunt chegar em terceiro para garantir o título. Contudo, faltando 12 voltas para o final, Hunt caiu para terceiro enquanto a pista começava a secar. Alguns pilotos tiveram furos nos pneus e Hunt foi um deles, caindo para a 5ª posição faltando cinco voltas para o final. Com pneus novos, Hunt voou nas voltas finais e recuperou duas posições, para terminar em terceiro e conquistar o título com um ponto de vantagem. "Minha vida vale mais que um título". Com esta frase, Lauda justificou porque parou o carro na 2ª volta e Hunt pode ser campeão. No ano seguinte, Niki Lauda foi campeão do mundo, deu uma ‘banana’ para a Ferrari e assinou um contrato milionário com a Brabham do bom velhinho. Correu 1978 e largou de mão o time em 1979, abrindo as portas para Nelson Piquet. Voltou na McLaren em 1982 e, com o carro turbo de 84, sagrou-se tricampeão. James Hunt não era nenhum gênio das pistas, mas não era um idiota como seu compatriota Nigel Mansell. Era rápido, era técnico e capaz de fazer grandes coisas, como levar a Hesketh – equipe criada por um aristocrata britânico, o Lord Alexander Hesketh, que gastou boa parte de sua fortuna na equipe – a uma impressionante vitória no GP da Holanda de 1975, conseguiu outros seis pódios. Feitos este que o conduziram à McLaren. Além das conquistas como estas nas pistas, Hunt foi um Bom vivant assumido, daqueles que bebia, fumava, farreava e que não perdia a oportunidade de agarrar um rabo de saia. Segundo uma ‘contabilidade’ que lembra muito a contagem dos 1000 gols do folclórico Tulio Maravilha, em uma entrevista Hunt confessou ter ido pra cama com mais de 5000 mulheres!!! Esse cara merecia uma estátua do tamanho do Big Ben. James Hunt era um dos extremos de uma época em que um piloto ainda podia ser ele mesmo, sem palavras medidas como hoje. Depois que conquistou o título, fez uma temporada bastante irregular em 1977 e uma pífia em 1978, onde foi ao pódio uma única vez. Em 79 foi para a Wolf, mas abandonou as pistas no meio da temporada. Tornou-se comentarista de F1 da BBC e morreu de tanta ‘manguaça’ que botou pra dentro. Em suma, um cara que era gente. Campeão? Foi... por circunstâncias, mas é bom ver gente normal vencer na vida. Quanto ao filme... ainda estou pensando se vou assistir ou não. Corro o risco de ser expulso do cinema!
Abraços, Mauricio Paiva |