A arte e os artistas Print
Written by Administrator   
Thursday, 13 August 2020 21:53

Normalmente, sou pela arte e não pelo artista. Ela fica e ele, com virtudes e defeitos, não. Existem os que carregam piano, os que tocam piano e há os virtuoses. É assim em cada segmento, na literatura, na pintura, no teatro e demais expressões. No automobilismo é igual; pilotar é uma arte, mas pilotar bem na chuva é obra-prima.

 

Claro, é dele que estou falando, o GP de Mônaco 1984. Assisti-o ao vivo e não consegui ficar sentado no sofá. Com perdão do trocadilho, foi um divisor de águas na história da F-1 moderna.

 

Um show sem comparação até hoje e ainda mais memorável que o de 1972 vencido por Jean-Pierre Beltoise debaixo também de uma chuva torrencial, que também assisti.

 

Por que o de 1984 é melhor?

 

Em 1972, mesmo não sendo pole position (largou em quarto), Beltoise, de BRM, chegou à primeira curva liderando e só fez abrir vantagem e tempo em cima de tempo mesmo com a chuva aumentando. O pole foi Emerson Fittipaldi, de Lotus 72-Ford, a primeira da carreira. No de 1984 o espetáculo foram as ultrapassagens e obstáculos vencidos por quem largou lá de trás com carro inferior. As tomadas de tempo haviam sido em tempo seco.

 

 Jean Pierre Beltoise – BRM. Mônaco 1972. (Foto: AP)

 

O que se viu foi realmente uma obra de arte. Ayrton foi, é e sempre será, o vencedor moral daquele GP. Um certo francês de McLaren-TAG/Porsche ganhou (note o verbo utilizado) porque outro certo francês pressionou um certo belga diretor da prova a acabar com aquela agonia e inevitável vexame.

 

Entretanto, o que poucos se lembram é quem foi o terceiro colocado, e que contribuiu para o espetáculo ficar ainda mais marcante.

 

Ele mesmo, o promissor alemão Stefan Bellof, de 26 anos e já reconhecidamente rápido nas provas de Esporte-Protótipo pela Porsche.

 

Assim como Ayrton, então com 24 anos, Stefan fazia sua estreia na F-1 naquele ano e pela primeira vez em circuito de rua.

 

Correndo pela já decadente Tyrrell-Ford, único carro com motor aspirado no grid, Stefan penou um bocado para conseguir a última posição de largada (20º),  enquanto Ayrton saía em 13ª com o mediano Toleman-Hart.

 

Para se ter uma ideia do trabalho de ambos, o venezuelano Jonnhy Cecotto, companheiro do Ayrton, só conseguiu o 18º lugar no grid e o inglês  Martin Brundle — arquirrival de Sena na F-3 no ano anterior — não conseguiu classificação com o outro Tyrrell-Cosworth ao se acidentar na curva da Tabacaria e não poder pegar o carro-reserva, impedido que foi pelo médico-chefe Sid Watkins por não se lembrar como chegou ao boxe.

 

Sempre lembrando que as tomadas de tempo para a largada foram sem chuva.

 

Mônaco é um circuito de dificílima ultrapassagem; todos sabem do glamour que é correr, vencer e convencer por lá, até por conta disso também.

 

Então, com a prova em supostas condições normais de piso seco, seria praticamente impossível os dois conseguirem as proezas que realizaram em condição tão adversa de piso e visibilidade na corrida.

 

 Stefan Bellof fez uma apresentação espetacular em Mônaco, 1984 (Foto: automobilemag.com)[/caption]

 

Ayrton subiu 12 posições, a maioria por ultrapassagens, enquanto Stefan passou por 17 obstáculos para chegar na condição de, dizem os cálculos, também ultrapassar o francês como fez o Ayrton; talvez até mesmo disputar a vitória com Ayrton. São conjecturas.

 

Ayrton venceu várias vezes naquele circuito, mas nunca mais nessa condição, e Stefan, além de desclassificado (dizem, por a Tyrrell infringir o regulamento de peso) infelizmente faleceria um ano depois na Eau Rouge em Spa.

 

Então, como explicar a masterpiece desses dois grandes artistas?

 

É uma questão de razão e sensibilidade; em outras palavras, técnica e talento.

 

Naquela temporada, havia três fornecedores de pneus.

 

A Toleman, por questões contratuais, pôde usar os mesmos pneus de chuva das principais McLaren, Brabham e Renault; a Tyrrell usava outra marca.

 

A impressão digital que um pneu deixa no solo é fruto de vários detalhes e diz muito de sua capacidade e do comportamento dinâmico do veículo.

 

 A pista molhada é um desafio extra para todos os pilotos. (Foto: circuito_portoalegre.blogsport.com)

 

A área de contato (forma) e as pressões exercidas contra o piso são consequência da chamada força vertical descendente (downforce) gerada pela aerodinâmica e também calibração de molas, amortecedores, rótulas e esforços na geometria do conjunto.

 

Já os vazios na impressão digital são por conta dos sulcos desenhados justamente para drenar a água que encontrarem pelo caminho; quanto menos, melhor para aderência (daí os pneus slick), mas pior para vencer a barreira imposta pela película de água no piso.

 

Quanto maior e mais tempo assim fique a área de contato, maior a aderência e a eficiência dadas pelo coeficiente de atrito entre composto de borracha e, no caso, asfalto molhado. Quanto mais eficiente a escultura na banda de rodagem, mais drenagem e, portanto, mais contato, pois a camada de água que tenderia a levantar o pneu já passou por ele.

 

Assim, manter a maior área de contato possível nos quatro pontos de apoio do veículo, para qualquer que seja a condição de transferência de peso nas frenagens e acelerações, é essencial para aproveitar bem as virtudes do conjunto.

 

  Ayrton Senna deu um verdadeiro show nas encharcadas ruas de Mônaco (Foto: youtube.com)[/caption]

 

Entretanto, a combinação desses fatores por si só não justifica melhores resultados, mas sim como eles são aproveitados por quem pilota valendo-se ainda de alguns conceitos básicos, entre eles o de velocidade relativa.

 

Quando dois veículos seguem na mesma direção e sentido em velocidades distintas, a velocidade relativa é a diferença entre elas. É como se o mais lento estivesse parado e o outro passasse por ele nessa velocidade.

 

Pois foi mais ou menos isso que aconteceu.

 

A distância necessária para uma ultrapassagem é tanto menor quanto maior seja a velocidade relativa entre os veículos.

 

Durante uma prova em piso seco, as velocidades relativas são mais próximas umas das outras, e num circuito como Mônaco, onde as distâncias entre curvas são pequenas, fica muito difícil ter espaço suficiente para uma investida no competidor à frente.

 

Já no piso molhado, e com uma boa dose de ousadia que não faltava nos dois, é possível usar praticamente qualquer espaço disponível visto que muitos pilotos andam em velocidades bem inferiores às que poderiam praticar.

 

Pois é, a técnica, com ajuda da Física, a gente até explica; agora, o que nem Freud explica é de onde os dois tiraram tanto talento para fazer isso parecer tão fácil naquele dia.

 

Coisa de virtuoses.

 

Mario Pinheiro

    
Last Updated ( Friday, 14 August 2020 10:14 )