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Written by Administrator   
Thursday, 08 October 2020 19:59

Fui engenheiro de pista da Cofap (hoje Magneti Marelli) quando fornecia amorteedores para todos os carros do Campeonato Brasileiro de Turismo Marcas e Pilotos no final dos anos 1980. As quatro principais fabricantes de veículos (FORD, FIAT, GM e VW) participavam oficialmente.

 

Tive a oportunidade de conviver com grandes nomes do automobilismo brasileiro, tanto dos que pilotavam como dos que preparavam os carros. Vários ainda hoje atuam, mas agora pit lane da Stock Car.

 

É de um deles, que já era reconhecidamente grande chefe de equipe, o exemplo de atitude e profissionalismo que marcou minha visão de trabalho.

 

Além de co-patrocinar o certame, a Companhia apoiava os Escort XR-3 da equipe FORD, que estava sob a batuta de Luiz Antônio Greco, e para estes fornecia amortecedores com variação eletrônica da calibragem.

 

Assim, eu devia a estes uma atenção especial; os resultados iam e vinham para o laboratório.

 

Templo e tempo

 

Chamado de templo, Interlagos é uma incógnita no quesito previsão do tempo. Coisas inusitadas acontecem ali no tema meteorologia.

 

Já vi neblina vinda da junção chegando no final do grid de largada e ao mesmo tempo um sol de rachar nas antigas curvas 1 e 2.

 

No passado, a mureta que separa os boxes da pista era um verdadeiro cabide de gente sem as cabines e equipamentos de hoje. Profissionais das equipes misturados à curiosos que iam e voltavam para a mureta, atravessando por dentro dos boxes para ver os carros depois que passavam pela reta e desciam pelo retão do antigo traçado.

 

Foi numa dessas que uma repentina chuva começou a cair apenas ali na reta de chegada. A debandada para dentro dos boxes foi grande; além dos curiosos, membros das equipes abandonaram seus postos. A prova continuou, pois chovia só ali.

 

Os XR3 da equipe seguiam bem na corrida, um deles pilotado pelo filho Fábio Greco.

 

 Escort XR3 em ação no autódromo de Goiânia. (Foto: acervo pessoal de Lian Duarte).

 

Resolvi seguir a tropa e cheguei a virar o corpo para correr para dentro do box.

 

Foi quando vi que ali ao lado ele estava concentrado, de prancheta, cronômetros e caneta na mão, focado e dedicado à prova, como se não estivesse chovendo. E continuou assim.

 

Senti-me envergonhado, virei de volta para a mureta e fiquei ali tomando chuva também.

 

Para ele, a minha permanência não fez a menor diferença; entretanto, para mim foi fundamental. Nenhuma chuvinha deve atrapalhar nosso comprometimento.

 

 Escort XR3 em peça publicitária na época do campeonato brasileiro de Marcas e Pilotos. (Foto: arquivo de família)

 

Detalhe, a chuva passou logo e todos voltaram para a mureta, mas somente ele (molhado) tinha uma leitura completa da prova naquele instante.

 

Depois da corrida, os pilotos da equipe informaram que os protótipos de amortecedores eletrônicos tinham auxiliado, especialmente no trecho molhado.

 

Poderem mudar a calibragem com um simples botão no painel, adequava o comportamento, alternando entre mais rígido (piso seco) e mais macio (trecho molhado).

 

Vantagem que os demais não possuíam, pois usavam amortecedores convencionais de calibragem fixa escolhida por suas equipes e confeccionadas no laboratório da Companhia.

 

Amortecimento variável

 

No dia-a-dia, as contínuas e cada vez maiores exigências de estabilidade, dirigibilidade e conforto de rodagem (tudo ao mesmo tempo) só podem ser mais bem atendidas com suspensões que se adaptem às diversas condições através de parâmetros variáveis eletronicamente. Daí o nome adaptativas. Nas convencionais sempre se perde algo e procura-se manter um compromisso para o objetivo do veículo.

 

 Luiz Antônio Greco éra um personagem diferenciado no automobilismo nacional. (Foto: acervo da família Greco)

 

As adaptativas podem ser reativas, quando reagem aos impulsos e se adaptam a eles, ou ativas, quando se preparam para os impulsos.

 

O objetivo é manter a carroceria o mais neutra possível em qualquer circunstância de movimento das rodas e ao mesmo tempo manter o maior contato pneu-solo por mais tempo.

 

A força de reação da mola é função direta (linear ou progressiva) do curso de suas extremidades, ou seja, posição relativa roda-carroceria. Já no amortecedor, as forças não lineares de reação são uma complexa função da velocidade e amplitude com que as extremidades são aproximadas (compressão) ou separadas (tração). Dissipam energia em forma de calor ao impedirem movimentos desordenados das molas e, portanto, da carroceria e da roda.

 

Essas diferenças, por si só, dificultam o casamento perfeito das equações de mola e amortecedor para toda a gama de condições dinâmicas a que está exposta a suspensão.

 

Para mitigar, surgiram as suspensões adaptativas “inteligentes” por conta da eletrônica embarcada.

 

 500 Km de Brasília, prova do brasileiro de marcas e pilotos: um verdadeiro laboratório de desenvolvimento. (Foto: 4 Rodas)

 

Molas e amortecedores podem ser mantidos na suspensão, mas trabalhados para de alguma forma alterarem suas curvas de reação durante o uso, ou totalmente substituídos por sistemas de atuadores hidráulicos ou à ar para executarem o mesmo trabalho, mas com gama muito maior para alterações a qualquer momento da marcha.

 

No lugar dos sentidos humanos, sensores eletrônicos para leitura do solo e de tantos outros parâmetros (velocidade, inclinação da carroceria, altura, freios, etc.) transmitindo seus sinais em alta taxas de resolução para uma central eletrônica que decide, então, qual a calibração predefinida a ser usada pelos atuadores e em qual momento. A presença humana entra aqui, na definição prévia dessa estratégia para a central eletrônica.

 

Projeto nacional

 

Internamente chamado de SAV – Sistema de Amortecimento Variável, o projeto brasileiro agia nas válvulas de abertura de um amortecedor comum através da adição de outra válvula, esta comandada eletricamente por uma central com ênfase em velocidade e freio.

 

Parece simples e rudimentar, mas foi um progresso e tanto, fruto do trabalho e dedicação de técnicos e engenheiros de um time do qual tive a honra de participar.

 

Dos protótipos, tanto nos carros de corrida como dos de rua em vários testes, chegou-se ao que permitia não só a venda para mercado reposição, mas também como equipamento original.

 

 Escort XR3 Fórmula: um projeto nacional com uma suspensão diferenciada. (Foto: arquivo da Ford do Brasil)

 

Em 1991 a FORD lançou a série especial XR3 Fórmula limitada a 750 carros utilizando o SAV, mas ficou nisso. Até hoje, nenhum outro veículo nacional saiu de fábrica utilizando suspensão minimamente inteligente.

 

No final de 1992, o mestre Greco nos deixou repentinamente.

 

De ambos, saudade.

 

Mario Pinheiro