Os intrincados caminhos entre a política, questões sociais e o esporte Print
Written by Administrator   
Wednesday, 16 September 2020 21:55

Caros Amigos, o GP da Toscana, disputado em Mugello e com todas as suas particularidades ainda não terminou em alguns aspectos que ultrapassam as linhas brancas que delimitam a pista e nem mesmo os muros e grades que cercam a propriedade.

 

Questões políticas e sociais quando refletidas no esporte já criaram situações bem distintas ao longo dos anos. Desde a abertura da temporada da Fórmula 1 na Áustria, Lewis Hamilton tem mobilizado boa parte dos pilotos, membros de equipes e opinião pública para as questões raciais, em particular nos Estados Unidos, que – na prática – o pais sede da nova administração da categoria.

 

Há pouco mais de 50 anos nas olimpíadas do México, no dia é 16 de outubro de 1968, na final da prova dos 200 metros rasos, o norte-americano Tommie Smith, “O Jato”, justificou seu favoritismo e levou o ouro com o tempo de 19,83 segundos (recorde mundial). Seu compatriota, John Carlos, levou o bronze. Ao cruzarem a linha de chegada, se abraçaram e fizeram os últimos ajustes para o protesto que entraria para a história do esporte.

 

Na cerimônia de entrega das medalhas, retiraram os sapatos e trajavam meias pretas. Subiram no pódio, receberam as medalhas e, ao tocar o hino dos Estados Unidos, eles não ergueram o rosto em respeito à nação, mas baixaram a cabeça e ergueram o punho, usando luvas pretas: a saudação dos Panteras Negras, organização política socialista e revolucionária norte-americana, fundada dois anos antes com o objetivo de organizar a população negra para enfrentar a violência causada pela polícia nos bairros negros.

 

O protesto em defesa das vidas negras não foi bem recebido pelas autoridades e imprensa. Os atletas foram duramente criticados até pelo Comitê Olímpico Internacional, que disse que não se pode misturar política e esporte.  A dupla de corredores teve seus vistos de permanência no México imediatamente cancelados e, no dia seguinte, foram expulsos da Vila Olímpica. Seus companheiros corredores do revezamento 4x400 quiseram abandonar os jogos, mas os medalhistas os convenceram a competir. Lee Evans, Larry James, Ron Freeman correram e levaram o ouro. No pódio, usaram boinas, outro símbolo dos Panteras Negras.

 

Junto a Tommie Smith e John Carlos está o australiano Peter Norman, o homem branco em segundo lugar no pódio. Naquela noite o corredor fez os 200 metros em 20,06 segundos, que permanece até hoje, 50 anos depois, como recorde nacional da Austrália para a modalidade. Ele não é negro e não ergueu o punho, mas usou o distintivo da OPHR no pódio como forma de demonstrar apoio ao protesto dos companheiros norte-americanos. Marginalizado em seu país, onde os brancos colonizadores viviam um momento de grande violência racista contra o povo nativo, os arborígenes, Tommie Smith também sofreu as consequências de seu ato. Banido do esporte, nunca foi homenageado pelo seu feito. Tommie Smith e John Carlos estiveram no seu funeral em 2006.

 

Intramuros, nos EUA, décadas depois, há alguns anos os jogadores de futebol americano, em um movimento que começou em 2016, quando o jogador Colin Kaepernick a protestar antes de todos os jogos. Desde o segundo semestre de 2016, o “quarterback” não cantava o hino com a mão no peito, mas se ajoelhava. O gesto teve muitas críticas, mas também muitas demonstrações de apoio, inclusive de outros jogadores do seu então clube, o San Francisco 49ers. Os protestos alcançou outros esportes como o Basquete e o Basebol, irritando o presidente Donald Trump.

 

Provavelmente exagerei no preâmbulo da coluna, mas acredito que se fazia necessário. Antes da corrida de F1 de domingo em Mugello, Hamilton usava uma camisa que dizia: “prendam os policiais que mataram Breonna Taylor” na frente e “diga o nome dela” ao lado de sua foto nas costas. Ele vestiu a camisa até o pódio depois de vencer a corrida. Taylor, uma mulher negra, foi morta a tiros em 13 de março quando policiais invadiram seu apartamento em Louisville, Kentucky, usando um mandado de proibição de detonação durante uma investigação de narcóticos. Ela tinha 26 anos.

 

Até Mugello, Hamilton usava uma camisa com os dizeres “Black Lives Matter” na demonstração “Fim do Racismo” na F1, realizada antes de cada corrida. A F1 permite que seus pilotos mostrem seu compromisso com a mensagem anti-racismo da maneira que acharem adequada naquele período de tempo antes do evento, tendo mobilizado a categoria a permitir que atos de protesto, com chancela oficial, fossem permitidos antes da provas, com todos os pilotos reunidos no grid, fora de seus carros, mesmo com alguns não assumindo a posição de colocar um dos joelhos no chão e adesivando os carros com a a frase “We race as one” (nós corremos como um só). Mais importante piloto do grid e maior vencedor da atualidade, o negro Lewis Hamilton tem vez, voz e protagonismo para liderar um movimento com esta visibilidade e incomodar muita gente.

 

Felizmente, os tempos são outros. No início da semana foi relatado que ele estava sendo investigado pela FIA por violar seu código esportivo internacional. O órgão também é signatário da Carta Olímpica que proscreve a “manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial”. No entanto, entende-se que nenhuma investigação foi lançada, embora uma revisão da política esteja em andamento.

 

A situação seria um potencial desastre de relações públicas para a F1 e o Grupo Liberty Media certamente tem esta visão. Hamilton continua sendo o único piloto negro do esporte e é o único piloto que tem muitos seguidores nos EUA. Ele tem estado na vanguarda da F1 para adotar uma forte postura anti-racista e foi sua condenação vocal da morte de George Floyd que levou muitos outros pilotos a falar ao lado dele.

 

Hamilton também recebeu o apoio total de sua equipe Mercedes. “Não estamos trazendo política para a F1, são questões de direitos humanos que estamos tentando destacar e aumentar a conscientização. Há uma grande diferença”, escreveu Mercedes nas redes sociais. O chefe da equipe, Toto Wolff, também apoiou Hamilton. “O que quer que ele faça, nós o apoiaremos”, disse Wolff: “A equipe está lutando contra qualquer tipo de racismo e discriminação e esta luta pessoal de Lewis pelo Black Lives Matter todo o apoio que podemos dar a ele. É a decisão dele”. Inclusive, trocaram a cor dos carros este ano!

 

A F1 tem um histórico de punir o que é visto como declarações abertamente políticas. Em 2006, os organizadores do Grande Prêmio da Turquia receberam uma multa de 5 milhões de dólares depois que o líder turco-cipriota Mehmet Ali Talat entregou o troféu do vencedor sendo anunciado como “Presidente da República Turca do Norte de Chipre”, um estado reconhecido apenas pela Turquia.

 

Mas no caso de Lewis Hamilton as e com a nova perspectiva crítica mundial, as coisas não são mais como em 1968. Apesar da FIA ter, inicialmente, informado que o fato da camiseta usada em Mugello estava “sob consideração ativa”, apesar das declarações de apoio ao movimento anti-racismo que tem sido feito pelos pilotos, liderados por Hamilton.

 

Contudo, há uma referência no Código Desportivo Internacional que estabelece que as equipes não podem usar propaganda política em seus carros, mas não há menção específica aos pilotos. “Os competidores que participam de Competições Internacionais não estão autorizados a afixar em seus automóveis publicidade de natureza política ou religiosa ou que seja prejudicial aos interesses da FIA”, afirma o artigo 10.6.2 do Código Desportivo Internacional.

 

Ouso questionar se alguém na FIA, no Grupo Liberty Media ou o governo de algum país para onde for a Fórmula 1 irá enfrentar aquele que vai se tornar o mais vencedor piloto da história.

 

Um abraço e até a próxima,

 

Fernando Paiva