No próximo dia 4 de julho passarão cem anos sobre aquele que é provavelmente uma das corridas mais memoráveis da história do automobilismo. Memorável por várias coisas: por uma rivalidade automobilística entre dois países antagonistas, pela tecnologia existente entre duas marcas que marcavam – e iriam marcar - uma tradição na modalidade, e por fim, por ser a última corrida de uma era pioneira no automobilismo, pois semanas depois, o continente europeu iria mergulhar numa guerra do qual marcaria para sempre uma geração. A RIVALIDADE FRANCO-ALEMÃ Quem me segue no blog [Continental Circus], sabe que desde o inicio da primavera europeia estou a escrever a história dos primeiros tempos do automobilismo, numa série chamada de “Os Pioneiros”, onde ali falo sobre os primeiros vinte anos de automobilismo. Apesar do automóvel ser uma invenção alemã, com o automóvel construído por Carl Benz, em 1886, foram os franceses que inventaram o conceito de automobilismo, quando organizaram a primeira corrida, entre as cidades de Paris e Rouen, em 1894. No final desse ano, formaram o Automobilie Club de France (ACF), a primeira instituição organizada do mundo com esse fim, para organizar as provas entre as cidades. Contudo, alguns acidentes graves, como os que aconteceram na corrida entre Paris-Madri, em 1903, fizeram com que a estrutura das corridas fosse repensada, passando das corridas entre cidades para as corridas em circuitos fechados, começando na Bélgica, com o Circuito das Ardenas, o antepassado de Spa-Francochamps. Fernand Charron era um dos grandes pilotos franceses do início do século XX. Também por essa altura, havia uma competição entre países, a Taça Gordon Bennett (começada em 1900 com o nome do milionário americano que a idealizou), com o intuito de desenvolver as industrias automobilísticas nos seus países. A França nunca gostou muito dessa competição, não só devido ao seu domínio e o enorme atraso nos outros países, como também limitava as inscrições dos seus carros a três por cada país. E tinha razões para temer: em 1905, data da última edição dessa competição, já tinha visto a ascensão da Itália, graças à Fiat, e da Alemanha, graças à Mercedes, que já tinha ganho a edição de 1903, com o belga Camile Jenatzy. Em 1906, o ACF decide então “libertar-se das amarras” da Taça Gordon Bennet e criar o primeiro “Grand Prix” do mundo, que será disputado na cidade de Le Mans, no oeste de França. Em termos de regulamentos, decide abrir a toda a gente, sabendo que a esmagadora maioria dos construtores existentes era francesa. Essa corrida foi ganha pelo Renault do húngaro naturalizado francês Frenc Szisz, e o sucesso do Grand Prix fez com que tivesse continuidade nos anos seguintes. Porém, os construtores estrangeiros começavam também a desenvolver as suas máquinas, a formar os seus pilotos e a desenhar as suas corridas. A Itália aproveitou isso, criando a Targa Flório, enquanto que a Alemanha tinha o KaiserPreis, e aos poucos, já venciam as suas corridas frente aos construtores franceses. E em 1908, quando o Grande Prémio é realizado na cidade de Dieppe, a França entrou em choque quando viu a Mercedes de Christian Lautenschlager vencer a corrida, na frente de dois pilotos franceses… guiando máquinas Benz alemãs (a fusão Mercedes-Benz só aconteceria em 1929). Ver a “sua” corrida ser ganha pelo “inimigo” alemão, numa altura em que a recuperação da Alsácia e da Lorena, perdida na Guerra Franco-Prussiana de 1870, era um desígnio nacional, foi uma humilhação no seu orgulho. E a partir de então, os construtores franceses queriam evitar que tal coisa voltasse a acontecer. AS FORÇAS EM PRESENÇA EM 1914. Nos anos seguintes, a França trabalhou para recuperar o seu domínio, e conseguiu. A entrada em ação da Peugeot, a partir de 1908, aliado aos avanços na tecnologia de construção dos seus motores fazem com que ganhem corridas a partir de 1911 e em 1914, a marca francesa era rei e senhor nas pistas mundiais. No ano anterior, tinham dominado a competição, tendo sido o primeiro construtor estrangeiro a ganhar as 500 Milhas de Indianápolis, através do francês Jules Goux. Para além dele, a equipa tinha outro francês: Georges Boillot. Os carros eram desenhados por uma equipa que incluía um emigrado italiano, Ettore Bugatti, que iniciava a sua carreira como engenheiro e construtor. Em maio de 1914, a Peugeot tinha voltado a Indianápolis, no sentido de tentar repetir a proeza, e conseguiram, batendo a concorrência americana. Mas carro vencedor não foi um carro oficial, mas sim a inscrição privada de outro francês, René Thomas… L'Equipe Peugeot para a disputa do Grande Prémio de França. O objectivo era derrotar os alemães. Por essa altura, o Automobile Club de France fazia a sua seleção para o lugar onde iria realizar o seu Grande Prémio. Tirando as edições de 1907 e 08, que repetiu em Dieppe, e a edição de 1909, que foi cancelada, devido à falta de inscrições, a corrida sempre andou de terra em terra, fixando-se na melhor oferta, devido à movimentação que o automobilismo trazia às cidades em questão. Para 1914, a escolha final, das dezenas de cidades candidatas, acabou por ser a de Lyon, pois estes concederam mais de 10 mil libras de subsídios, uma fortuna na época. Assim sendo, a data da corrida ficou marcada para o dia 4 de Julho. Quanto ao circuito, este tinha 37,629 metros, e os pilotos teriam de fazer um percurso de vinte voltas, no total de 752 quilómetros. Em termos de carros, estes tinham uma restrição de 4500cc em termos de cilindrada, com um peso máximo de 1100 quilos. Houve 36 inscrições de equipas francesas e estrangeiras. Dos franceses, a grande destaque era a Peugeot, que ia correr com Georges Boillot, Jules Goux e Victor Rigal, acompanhada por outras duas marcas, a Delage (que tinha Albert Guyot e Paul Bablot, bem como o belga Arthur Duray) e a Alda, com Ferenc Szisz, Maurice Taubeteau e Petro Bordino. A Fiat tinha três carros, para os italianos Alessandro Cagno e Antonio Fangnano, bem como o inglês John Scales. Outra italiana, a Nazzaro, tinha Jean Poporato e Felice Nazzaro, enquanto que a inglesa Sunbeam colocava três carros, para Kelheim Lee Guiness, Jean Chassaigne e o americano Ralph De Palma. Outra marca inglesa, a Vauxhall, tinha dois carros, para W. Watson e John Hancock. Um americano, Ralph DePalma, cruzou o atlântico para defender a inglesa Sunbeam. A Alemanha representava-se pela Opel, que tinha Franz Breckheimer, Carl Jörns e Emile Erndtmann, mas o maior perigo vinha da Mercedes. Decidiram investir tudo nesta corrida, no sentido de repetir o feito de seis anos antes. Inscreveram cinco carros, quatro oficiais, para os alemães Max Sailer, Christian Lautenschlager e Otto Salzer, o francês Louis Wagner e o belga Theodore Pilette, que era o representante da marca no seu país. Durante a Primavera visitaram em detalhe o circuito, montaram o seu quartel-general na cidade e usaram profusamente os dois dias de treinos para afinar a melhor estratégia possível. Tinham até uma arma secreta: os novos pneus Continental, que eram bem mais resistentes do que os da concorrência, especialmente os Peugeot, que tinham pneus Dunlop. Chegou-se até a noticiar que a Mercedes colocou este aviso na ordem do dia: “Por razões de propaganda, a Mercedes decidiu ganhar este ano o Grande Prémio” A PRIMEIRA BATALHA DE UMA FUTURA GUERRA EUROPEIA. Como já foi dito, o “Grand Prix de France” estava marcado para o dia 4 de Julho. Contudo, poucos dias antes, a 28 de Junho, a politica entra em cena: o Arquiduque herdeiro da Áustria, Francisco Fernando, é morto na cidade de Sarajevo pelo anarquista sérvio Gavrilo Princip. A partir de então, a crise instala-se na Europa e todos sabiam que caso o sistema de alianças então vigente entrasse em vigor, milhões de pessoas pegariam em armas numa questão de dias… Agora, já não era mais uma corrida, mas sim a primeira batalha de uma futura guerra europeia. Mesmo um século atrás, a Mercedes já se fazia presente - e forte - nas corridas europeias. Na alvorada do dia da corrida, já mais de 300 mil espectadores espalhavam-se ao longo do circuito, esperando pela partida, que se iria verificar às oito da manhã. Os carros iriam partir de dois lado a lado, com intervalos de 30 segundos. O primeiro carro a passar foi o Peugeot de Boillot, mas quando se somaram os tempos, verificou-se que o líder era… o Mercedes de Max Sailer, com 18 segundos de avanço. A táctica da Mercedes era simples: iriam lançar um dos seus carros para a frente, levando-o ao limite das suas capacidades, como um “isco” para que os Peugeot pudessem morder, já que ali, com a fama que tinham, iriam correr com o orgulho nacional presente. E eles morderam! Sailer imprimiu um ritmo alucinante durante cinco voltas, até que os rolamentos da cambota do seu carro griparam. Com isto, Jules Goux e Georges Boillot ficaram então na frente, mas logo atrás de si tinham os outros Mercedes, de Lautenschlager e de Wagner, que andavam perto dos Peugeot, mas sem forçar muito o ritmo. Na sexta volta, era Boillot que estava na frente, mas o segundo, a menos de um minuto, era Lautenschlager, que já tinha passado Jules Goux. Otto Saltzer e Louis Wagner não estavam muito atrás, na quarta e quinta posições, respectivamente. Martin Schorr era um dos favoritos à vitória... e liderou parte da corrida. A partir dali, foi um duelo épico: nas onze voltas seguintes, Boillot tentou se distanciar de Lautenschlager, mas este não se descolava. Para piorar as coisas, sempre que se distanciava, isso fazia com que os pneus se desgastassem, obrigando-o a trocá-los. Boillot fez oito paragens, em contraste com uma única por parte de Lautenschlager. Na volta 18, a duas do fim, uma nova paragem fez com que perdesse o comando para o piloto alemão, e a partir dali, tentou fazer a recuperação da sua vida. Tinha que ser: a honra da França estava em jogo. RECEBIDOS EM SILÊNCIO. Por essa altura, a Mercedes deu ordem para Lautenschlager no sentido de aumentar o ritmo, pois a diferença entre eles tinha caído para 23 segundos, no início da última volta, os últimos 36 quilómetros até à meta. Boillot, nessa altura, estava a levar o carro até ao limite, e para além dele. Toda a França estava de olhos postos nele, como a última esperança contra os alemães, pois todos queriam que os eventos de 1908 não se voltassem a repetir. Mas tal não aconteceu: a 23 quilómetros da meta, uma das válvulas do motor Peugeot partiu-se e Boillot é obrigado a abandonar. Inconsolável, ele e os espectadores assistem ao triunfo total da Mercedes e de uma estratégia que resultou pleno: os carros alemães monopolizaram o pódio, com Lautenschlager como vencedor, Louis Wagner em segundo e Otto Salzer em terceiro. Jules Goux foi o melhor francês, e o melhor dos Peugeot, no quarto lugar, a nove minutos e meio. Christian Lautenschlager fez tudo certo e mereceu a vitória. Os vencedores foram recebidos com um silêncio gelado no pódio da corrida, e voltaram para Estugarda para serem recebidos como heróis. Vinte e quatro dias depois, o Império Austro-Húngaro declarava guerra à Sérvia e seis dias mais tarde, a 2 de Agosto, o sistema de alianças estava a funcionar em pleno, mobilizando dezenas de milhões de jovens para uma guerra que parecia ser curta. Na realidade, tinha acabado naquele momento uma era importante, que na vida das pessoas, quer no automobilismo, e enquanto uma geração inteira se matava nas trincheiras da Flandres, as corridas de automóveis ficaram suspensas na Europa até 1919. Quanto aos participantes desta grandiosa corrida, cada um teve sorte diferente. Do lado francês, Georges Boillot aproveitou a guerra para se tornar primeiro no motorista do general Joffre, mas queria tarefas de combate e foi transferido para a Força Aérea, tornando num ás da aviação e condecorado com a Croix de Guerre e a Legião de Honra. Contudo, Boillot acabou por morrer, abatido por caças alemães em Verdun, a 19 de Maio de 1916. Já Jules Goux retomou a carreira automobilistica depois da guerra, retirando-se em 1926 viveu até ao dia 6 de Março de 1965, quando morreu… vitima de uma reação alérgica ao marisco. Tinha 79 anos. Christian Lautenschlager, Otto Sailer e Louis Walter fizeram o 1-2-3 da Mercedes, calando a torcida francesa.
Do lado alemão, o vencedor, Christian Lautenschlager, também voltou a correr depois da I Guerra, chegando até a competir em Indianápolis. Trabalhou para a Mercedes até à reforma e morreu em 1954, aos 76 anos. Max Sailer também trabalhou para a marca de Estugarda, tornando-se no chefe do departamento desportivo da marca nos anos 30, ajudando a montar as “Flechas de Prata” ao lado de Alfred Neubauer. Acabou por morrer a 5 de Fevereiro de 1964, aos 81 anos. Hoje em dia, um dos Mercedes originais dessa corrida está exposto no museu da Mercedes, em Estugarda, e participa regularmente em eventos históricos. Contudo, a sua história é interessante: poucas semanas depois da corrida, ele estava em exposto em Londres. Contudo, a 4 de Agosto, a Inglaterra entra em guerra com a Alemanha e o carro é apreendido pelas autoridades, para ser devolvido à Alemanha no final da guerra. Isso é verdade, mas tal coisa aconteceu… em 1950, depois da II Guerra Mundial! Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Terixeira |