Há precisamente 75 anos, começava a II Guerra Mundial. A invasão da Alemanha nazi à Polónia era o culminar de vários meses de tensão internacional entre ambos os países, dos quais os polacos tinham recebido garantias de que seriam assistidos pela França e Grã-Bretanha. Mas a II Guerra Mundial significaria também o final de uma era para o automobilismo europeu, de dominio dos carros da Mercedes e da Auto Union, as equipas alemãs financiadas pelo estado alemão para demonstrar a superioridade da sue tecnologia. E esse final aconteceu nas ruas de Belgrado, a capital da então Iugoslávia. O DOMINIO ALEMÃO NA EUROPA Desde 1934 que Mercedes e Auto Union dominavam as competições europeias. A primeira, mais tradicional, tinha Alfred Neubauer como diretor desportivo, e pilotos como Rudolf Caracciola, Manfred von Brauchitsch, Louis Chiron e Richard Seaman como os seus expoentes mais fortes. Do lado da Auto Union, cujas máquinas eram desenhadas por Ferdinand Porsche, tinham ao longo dos anos sendo guiados por pilotos como Bernd Rosemeyer, Hans Stuck, Achille Varzi e Tazio Nuvolari. Em 1939, Rosemeyer e Seaman estavam mortos, enquanto que Achille Varzi estava afastado das lides depois de ter sido descoberta a sua adição pela morfina. A temporada tinha sido interessante, pelo facto da Mercedes ter descoberto um excelente piloto, Hermann Lang, que guiava o modelo W154, estreado no GP de França de 1938, em Reims. Graças a ele, a Mercedes venceu três das quatro corridas oficiais, entre elas o GP da Alemanha, no circuito de Nurburgring. Contudo, nessa prova, o vencedor foi Rudolf Caracciola, enquanto que Lang tinha vencido em Spa-Francochamps e no circuito suiço de Bermgarten, que ocorrera a 20 de agosto. Para além das quatro provas oficiais, existiam mais dez corridas não oficiais, mas dos quais os pilotos da Auto Union e da Mercedes participavam, entre elas o GP de Bucareste, na Roménia, o GP da Finlândia, corridas em Angoulême e Pau, em França, ou corridas no circuito de Brooklands, na Grã-Bretanha. E havia mais algumas provas, uma das quais o Grande Prémio de Belgrado, marcado para o dia 3 de setembro, duas semanas depois de terem corrido em terras suiças. NO DIA DO ANIVERSÁRIO DO REI A corrida de Belgrado iria ser feita num circuito feito à volta do Parque Kalemegdan, na Fortaleza da cidade, com o alto patrocínio do rei Pedro I da Iugoslávia, que aos 16 anos, ainda era menor de idade, e no seu nome e em seu lugar, o seu tio, o principe Paulo, era o seu representante. Com 2790 metros de extensão, a corrida iria ter ao todo 50 voltas, no total de 139,5 quilómetros de extensão, num piso que não era totalmente apropriado, pois corria-se com piso em paralepipedo, que fazia com que os carros escorregassem em piso molhado. Cedo, a participação alemã ficou assegurada, com a Auto Union a ter quatro inscrições para Hans Stuck, Ulrich Bigalke, o italiano Tazio Nuvolari e o suiço Hermann Paul Muller; enquanto que a Mercedes tinha três carros para Von Brauchtisch, Lang e Valter Baumler. Contudo, a Auto Union iria trazer apenas dois carros para Belgrado, e dois dos seus pilotos não iriam correr. Para além disso, estavam inscritos dois Maserati 8CTF, para o alemão Paul Pietsch e para o italiano Luigi Villoresi, e dois Alfa Romeo 308, um deles para o francês Raymond Sommer. Para além disso, havia um piloto local, Bosko Millenkovic, que corria num Bugatti Tipo 51, com quatro anos de idade e naturalmente desfasado em relação aos carros alemães. ANTES DA GUERRA COMEÇAR Contudo, ao longo daquele verão, as coisas estavam tensas na Europa. Desde que as tropas nazis tinham anexado a Austria, em março de 1938, que se sabia que a Alemanha queria criar o seu "lebensraum" (espaço vital) no sentido de juntar todos os alemães numa só bandeira. Em setembro desse ano, ameaçou ir para a guerra se a Checoslováquia não entregasse os Sudetas, a área com maioria alemã. Uma conferência internacional, em Munique, no final de setembro, resolveu o assunto, com os britânicos e os franceses a obrigarem os checos a cederem essa área, para preservar a paz na Europa. Mas foi uma ilusão. Hitler e os seus alcólitos do partido Nazi queriam mesmo conseguir o maior numero de regiões possivel, mesmo recorrendo à força, e depois de ficarem com a Boémia-Morávia (a área da atual República Checa) em março de 1939, que se sabia que, mais cedo ou mais tarde, a Alemanha iria mergulhar a Europa numa nova guerra, a segunda em 21 anos. E ao longo de todo o verão, as tensões acumulavam-se, devido às reivindicações dos alemães de integrarem o estado de Dantzig (atual Gdansk, na Polónia) e isso viu-se na lista de inscritos: os carros italianos decidiram não embarcar para Belgrado, deixando apenas os carros alemães e a inscrição local de Milenkovic. E dois dias antes da corrida, a 1 de setembro, a Alemanha invade a Polónia, no sentido de derrotar os exercitos polacos e ocupar o país. Imediatamente nesse dia, Grã-Bretanha e França decidem dar um ultimato de dois dias à Alemanha para que retirasse de território polaco, pois caso contrário, iria declarar guerra. O ultimato expiraria no domingo, 3 de setembro, pelo meio dia, horário do centro da Europa, onde horas em Londres. E era precisamente na hora da corrida, em Belgrado. A QUALIFICAÇÃO E RESPECTIVAS ATRIBULAÇÕES A primeira sessão de treinos foi na quinta-feira, 31 de agosto. Os Mercedes - que tinham um sistema inovador de injeção de combustível - cedo marcaram um tempo de 1.16,2, seguido por Von Brauchtisch, com 1.17,3, e do Auto Union de Hermann Paul Muller, com 1.18,3, quase dois segundos atrás de Lang. Muller era o unico que lá estava em Belgrado, dado que Nuvolari e Stuck iriam aparecer apenas no sábado. As coisas passavam sem problemas de maior na pista, mas os espectadores já liam nos jornais os rumores de que as tropas alemãs estavam a concentrar-se na fronteira polaca, esperando por uma ordem para atacar. Quando despertaram, no dia seguinte, os jornais locais faziam edições umas atrás das outras, com edições especiais sobre a invasão. Isso afligiu os organizadores, que tiveram de pedir às equipas alemãs para que ficassem, pois em caso de cancelamento, existiria um enorme prejuízo financeiro. Esse foi um dia de muito calor, com temperaturas acima dos 30 graus, e com a temperatura no chão perto dos 40 graus, dando dificuldades acrescidas aos pneus, devido ao seu desgaste. Mesmo assim, os tempos desciam, face ao dia anterior: Lang conseguiu 1.15,4, enquanto que Muller só conseguia 1.18,2, num treino marcado por problemas de motor, que sobreaquecia. Sem Nuvolari presente, Ulrich Bigalke, um dos pilotos substitutos, deu algumas voltas à pista, mas voltou às boxes devido a um problema com a bomba de água, e fazendo apenas 1.37,0. Pouco depois, Muller pegou no carro e fez 1.16.0, mostrando que este estava pronto a correr. As coisas continuavam tensas no sábado. Já se sabia do ultimato franco-britânico, mas esses pensamentos foram momentâneamente afastados quando Stuck e Nuvolari chegaram a Belgrado, dispostos a guiar o carro que faltava. Ambos chegaram à conclusão de que o mais veloz poderia guiar no dia da corrida. Contudo, a equipa decidiu logo que Stuck não participaria, deixando o carro para Nuvolari. Este experimentou o carro de manhã, numa sessão especial arranjada pela organização, e começou por fazer 1.20,2, até melhorar para 1.17,2. Pela tarde, os Mercedes mostraram a sua superioridade, com Von Brauchitsch a fazer 1.14,2, seguido por Lang, com 1.15,0. Parecia que ambos os pilotos queriam fazer uma corrida entre si para ver quem fazia o melhor tempo, mas Neubauer proibiu-os de se arriscarem em pista. Na Auto Union, Muller fez 1.15,2, enquanto que Nuvolari fez apenas 1.16,3, num treino encurtado devido a problemas no seu carro. No meio disto tudo, Milenkovic nem sequer marcou tempo nesta qualificação, preferindo esperar pela corrida. VITÓRIA DE NUVOLARI E UM PLANO DE FUGA O domingo amanheceu com a certeza de que a Alemanha não iria recuar face ao ultimato franco-britânico e que a guerra iria ser inevitável. Conta-se a lenda de que quando foi dada a noticia de que havia guerra, Von Brauchitsch (que era o sobrinho de um dos generais alemães de maior prestigio da Wermacht) entrou em pânico e exigiu a presença de um avião que o levasse para a Suiça. Contudo, Neubauer interceptou-o no aeroporto e ordenou-o que fosse correr. Contudo, na realidade, coloca-se essa história em dúvida. A partida deu-se pela uma da tarde, com um tiro de canhão vindo da fortaleza. Lang partiu logo para a frente, desejoso de vencer a corrida sobre Von Brauchitsch. Nuvolari e Muller vieram a seguir, mas o sobrinho do general não estava devidamente concentrado na corrida e fazia as curvas de forma demasiado aberta, trazendo pedras e terra para a pista. Na quinta volta, uma dessas pedras atinge os óculos de Lang, estilhaçando-os e entrando num dos seus olhos. Magoado, encosta à boxe e é substituido por Walter Baumer. Von Brauchitsch ficou com o comando, mas na sétima volta, ele falha uma curva, fazendo um pião, deixando o comando para Nuvolari, que pouco depois caiu nas mãos de Muller. Depois, abriu uma vantagem de cinco segundos para o piloto italiano, mas na 30ª volta, um furo no pneu traseiro direito fez com que perdesse tempo nas boxes, dando o comando para Nuvolari, que era ameaçado por Von Brauchitsch. Contudo, o alemão faz novo pião e abriu uma vantagem que seria o ideal para que o mitico pioloto italiano pudesse manter o comando até à meta, com uma vantagem de 7,6 segundos. Muller ficava com o lugar mais baixo do pódio, a 31,6 segundos, enquanto que Milenkovic foi o quarto... a 19 voltas do vencedor. Após o final da corrida, as equipas alemãs decidiram elaborar um plano para chegar até a território alemão. Depois de descartar uma passagem pela Hungria, por receio de que as autoridades locais pudessem apreender a sua gasolina especial, decidiram que iriam seguir em comboio pelas estradas iugoslavas até à fronteira austro-eslovena. Demoraram mais de um dia e meio para chegarem até abrigo seguro, mas mesmo quando chegaram sãos e salvos às suas fábricas, as coisas não aconteceram como esperavam ser recebidos: o exército decidiu apreender os carros e guardá-los em lugares mais seguros. Como em 1914, aquela tarde de domingo em Belgrado tinha ali visto o final de uma era dourada do automobilismo. Agora, a Europa iria mergulhar em seis anos de inferno, e a Alemanha só voltaria a demonstrar o seu poderio nas pistas europeias quinze anos mais tarde, já com a implementação do campeonato do mundo de Formula 1. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira |