Ele é o nome mais importante da história do automobilismo português. Um vencedor em toda a sua trajetória até chegar na Fórmula 1 onde sua maior luta foi pela sobrevivência após um grave acidente. Pedro Lamy se reinventou quando foi correr em carros de turismo e protótipos. Venceu as 24 horas de Le Mans na categoria GT e fez parte do programa de desenvolvimento de propulsão híbrida da Peugeot. Durante sua última estada no Brasil, José Pedro Lamy Mourão Viçoso conversou com o site dos Nobres do Grid falando sobre o automobilismo em seu país, sobre como o esporte está nos dias de hoje e as perspectivas para o futuro. NdG: O Brasil tem hoje uma grande população urbana e para que cresceu em cidades grandes é difícil visualizar como é crescer e viver numa cidade pequena. Como foi esta tua experiência de vida? Pedro Lamy: Na verdade não era nem mesmo uma cidade. Era uma aldeia, a Aldeia Galega, com poucos habitantes, nem sei como estimar quantas pessoas viviam lá, mas eram muito poucas, todos se conheciam. Para mim era viver bem. Eu cresci ali, ia para a escola com as outras crianças ali na aldeia mesmo. Torres Vedras era a cidade mais próxima e também não era muito grande e era uma vida muito tranquila. Podíamos brincar nas ruas jogar bola, estas coisas que nas cidades grandes é difícil de se fazer fora de um clube. NdG: É verdade que ainda criança você entrou para o mundo da velocidade... e com duas rodas apenas? Pedro Lamy: Sim, eu comecei a correr de motos, mini motos na verdade, com 6 anos de idade em mini MotoCross. Havia e acho que ainda acontecem campeonatos para crianças nas cidades do interior, nas vilas e aldeias tanto com estradas de asfalto, adaptadas para as corridas como em traçados para o MotoCross, ou mesmo a combinação destes. Eu me diverti muito com isso. Fiquei correndo de motos até os 11 anos de idade, quando eu e meu pai decidimos que iríamos para o kart. Assim com 12 anos, larguei as motos e fui para o kart. NdG: A mudança foi voluntária ou foi por pedido do seus pais ou mesmo da sua mãe? Pedro Lamy: Desculpe, não estou a perceber... NdG: É que o Emerson Fittipaldi corria de motos quando adolescente e um dia sua mãe bateu-lhe com uma vassoura. Ele largou as motos e ficou só nos carros desde então! Pedro Lamy: É verdade? Nunca tinha ouvido falar disso! Campeão do mundo graças a uma vassoura... no meu caso, o mecânico da minha moto tinha um filho que também corria e ele sofreu um grave acidente, ficando paralítico. Não mexia nada da cintura para baixo. Depois disso eu e meu pai decidimos que seria melhor mudar para os karts. Começamos a ver que teriam novas categorias, com motos maiores, saltos maiores... era melhor parar. Mudar. NdG: Portugal tem uma grande tradição nos Rallies. Seu pai foi piloto de Rally. Você não se interessou em seguir este caminho? Pedro Lamy: Antes dos 18 anos não tem como ir para os rallies. Assim, o caminho era mesmo o kart. Quando fiquei adulto, estava tão bem adaptado à velocidade no asfalto e todos diziam que eu tinha potencial para chegar até à Fórmula 1. Isto é um grande incentivo para um garoto que sonhava em correr, que amava a velocidade. Assim, ir para os rallies não me passou pela cabeça, meu caminho era continuar nas corridas, ir para as categorias de monopostos e tentar chegar na Fórmula 1, o que eu consegui. NdG: Chegar à Fórmula 1 não é uma “trajetória normal”: É uma “trajetória de exceção”! São pouquíssimos os pilotos que chegam lá... e você chegou. Ainda mais vindo de um país onde não há um histórico de pilotos na categoria. Como você vê isso? Comecei correndo em motos, fazendo MiniCross, mas estava crescendo e os riscos eram muito altos. Seguir para os karts era melhor. Pedro Lamy: Foi fruto de muito trabalho, muita dedicação, muitos sacrifícios. Antes de mim tivemos o Pedro Matos Chaves e no início da Fórmula 1 tivemos outros pilotos, mas isso há muito tempo atrás. Chegar na Fórmula 1 não requer apenas talento. Todos são muito bons, muito rápidos e talentosos. Tem a ver também com ter oportunidades. As pessoas dizem que eu era um dos melhores pilotos que haviam surgido naqueles anos e as pessoas acreditaram em mim, no meu potencial e me apoiaram para que eu conseguisse chegar na Fórmula 1. NdG: Quando você fala de “apoio” está também colocando a questão do dinheiro, dos patrocínios? Como foi esta relação que hoje em dia está tão importante? Pedro Lamy: Havia sim uma grande esperança em mim, afinal, fui campeão em todas as categorias de acesso à Fórmula 1, exceto a F. 3000, onde terminei em segundo lugar, apenas um ponto atrás do campeão. Havia uma relação de confiança muito grande e havia investimento. Eles viam uma possibilidade real de sucesso. Talvez as apostas nos primeiros anos não tenham sido as mais adequadas, mas conseguir de imediato uma grande equipe era algo praticamente impossível NdG: Talento e velocidade foram coisas que nunca te faltaram, muito pelo contrário. A Fórmula 1 é injusta? Existem fatores lá dentro que fazem com que os melhores nem sempre recebam o que merecem? Pedro Lamy: Eu não vejo desta forma, como injusta. É um meio muito duro, muito competitivo, onde existem muitas pessoas boas, muitos pilotos bons e que simplesmente não há lugar para todos. Dependendo dos passos que forem dados, dos contatos feitos, dos contratos assinados, pode-se conseguir aquilo que se quer ou não. Pelo menos esta é a forma que eu analiso como as coisas aconteciam naquele tempo. Atualmente as coisas ficaram um pouco mais difíceis, mais comerciais, outros interesses entraram em questão, mas ainda assim não se pode deixar de considerar os pilotos que lá estão como bons pilotos. O mundo como um todo está mais e mais competitivo e a Fórmula 1 não ficou diferente. NdG: Os acidentes que você sofreu prejudicaram estes planos de crescimento na categoria a qual ponto? Você tem alguma sequela? Pedro Lamy: Eu sempre me refiro àquele acidente em Silverstone, que foi muito grave. Eu fiquei praticamente um ano afastado das corridas. Foi uma recuperação muito difícil. Eu fiquei quatro meses sem andar, sem conseguir caminhar e o processo de recuperação física foi muito dolorido, mas eu consegui me recuperar e voltar a correr, mas aquilo tudo atrapalhou bastante a carreira. O outro acidente ao qual você se refere foi o de Ímola, no dia em que o Ayrton [Senna] morreu, não é? Aquele ali, vendo as imagens na televisão, parece muito mais grave do que foi. Naquele não me machuquei. Quanto à sequelas, não fiquei com nenhum problema físico. Consegui voltar a correr e ser o quão rápido o carro me permitia. NdG: Depois de toda uma formação, uma trajetória com carros de fórmula, você encontrou espaço para continuar correndo nas categorias de turismo. Como foi o teu processo de adaptação? Eu consegui vencer em todas as categorias que disputei e isso despertou muitas esperanças em Portugal. Pedro Lamy: O meu primeiro ano em carros de rodas cobertas, em protótipos, foi em 1997. Como venho correndo com estes tipos de carro, entre protótipos e turismo, desde então, hoje tenho mais anos com eles do que todos os anos correndo com Fórmulas e mesmo karts. Depois de andar num Fórmula 1, toda categoria que você for andar vai ser mais lenta. Os carros são mais pesados, as reações são menos brutas. A potência se dilui com o peso do carro e eles são mais dóceis. Mas isso não deixa de ser tão difícil ou mesmo mais difícil do que andar num Fórmula. Os teus pontos de referência são outros, a tua visibilidade da pista, do entorno do carro, da aproximação para os outros carros e dos outros carros no seu é completamente diferente, mas com o tempo aprende-se. No início eu achei que seria mais fácil, mas não é. NdG: Você correu de kart em seu país. Como era, quando você correu e como é hoje o automobilismo de base lá em Portugal? Pedro Lamy: Na época em que corri havia boas disputas, mas os pilotos portugueses não tinham, por assim dizer, muito interesse em ir correr no exterior, algo que penso ter mudado um pouco há algum tempo, com nossos pilotos participando de provas de kart do europeu e do Mundial da categoria. Quando eu corri em meu país, ainda havia a F. Ford por lá. Hoje, infelizmente não existe mais. Era uma categoria muito competitiva, com um bom grid, com pilotos novos e alguns bem experientes, o que era bom para os novatos aprender. Com o fim da F. Ford os pilotos saídos do kart ficaram sem ter uma grande opção onde correr. Temos competições com carros de turismo, claro, mas quando o garoto sai do kart ele pensa mesmo em um fórmula, não há dúvidas. Atualmente temos em Portugal corridas de GT como principal categoria para quem fica no país e continua a correr depois do kart. É um bom campeonato, com alguns pilotos que também correm no circuito europeu. NdG: Você foi eleito há pouco tempo o Piloto do Século XX em seu país. Aqui no Brasil está em moda uma palavra: legado! Referente ao que se deixa depois de uma passagem de um evento... que legado você deixou para o automobilismo português? Qual é o impacto da tua presença? Você vai à eventos nacionais de kart ou automobilismo? Aquele acidente em Silverstone foi muito duro. Ele certamente prejudicou o futuro que eu poderia ter na Fórmula 1. Pedro Lamy: Sim, sempre que posso eu vou. Na Europa é tudo mais perto e Portugal é um país pequeno, o que facilita a conhecermos toas ou quase todas as pessoas do meio e a conseguir estar presente e parte dos eventos que acontecem. Inclusive, eu tenho em parceria com um amigo dos tempos de kart, uma equipe de competição no campeonato português. Não conheço nenhum piloto que andou quando criança ou adolescente de kart que não tenha uma paixão pelo kartismo e que não continue a frequentar este maio. Talvez, de alguma forma, a minha presença estimule os garotos no kart, mas eu, sinceramente, não tenho uma ideia sobre o que poderia ser este impacto. Nunca ninguém fez esta abordagem comigo por lá. NdG: O Autódromo do Estoril recebeu a F1 por muitos anos e há algum tempo Portugal tem o moderno Autódromo de Portimão. Além desses, há mais quantos circuitos permanentes no país? Eles estão bem cuidados? Pedro Lamy: Sim, além destes dois temos o circuito de Braga, no norte do país, uma pista muito interessante, onde sempre gostei de correr, mas sendo Portugal um país pequeno, não tinha como ter muitos autódromos. O que sempre houve foram corridas em circuitos urbanos, como na cidade do Porto, onde correu diversas vezes o Campeonato Mundial de Endurance. Eu sempre achei os circuitos urbanos muito desafiadores. O Autódromo de Portimão é novo, muito moderno e seguro. Pode receber qualquer categoria lá. O Estoril já é mais antigo, mas é muito bom também. Passou por algumas modificações nos últimos tempos para adequar-se à novas normas de segurança. Continua um circuito atual. NdG: Seguiram-se a você alguns pilotos que conseguiram uma boa projeção internacional, como o Tiago Monteiro, o Álvaro Parente, o Felipe Albuquerque e o António Felix da Costa. Eles foram fruto de um legado que você deixou? Os dois últimos não conseguiram dar aquilo que chamamos de “último passo”. Como estes processos foram vistos pela mídia e pelos pilotos do país? Pedro Lamy: O Tiago chegou a correr algum tempo na F1, depois saiu e os outros fizeram tudo certo, mas usando suas palavras, não conseguiram dar o “último passo”, mesmo estando em equipes bem estruturadas, no caso do António Felix da Costa, nu programa da Red Bull, que talvez seja a melhor estrutura existente hoje para dar chances a um piloto de chegar à F1 e mesmo assim não conseguiu. Nos dias de hoje há um outro fator que tem influenciado muito no posicionamento das equipes para a escolha de pilotos que é o retorno de mídia para os patrocinadores. Eu vejo por este aspecto, por exemplo, a escolha do [Daniil] Kvyat. Portugal é um país pequeno, com um mercado pequeno, uma população pequena, ao passo que a Rússia é gigantesca, com um mercado consumidor muito mais interessante do que Portugal. Em termos de mercado, de interesses comerciais que passaram a fazer parte do automobilismo, a escolha não foi errada. Além disso, ele mostrou ser um ótimo piloto, a ponto de ser ele o escolhido para substituir Sebastian Vettel na equipe. NdG: Lembro-me de ter visto há cerca de duas décadas, nas bancas de jornais, dois tabloides, o “Volante” e o “Autosport”, que eram quinzenais e vendiam bem. Eles ainda existem? Ser escolhido o piloto do Século XX foi uma grande honra para mim e Portugal tinha outros grandes nomes na história. Pedro Lamy: Apenas o “Autosport”, mas este passou a ser semanal faz muito tempo e continua vendendo bem. É uma boa publicação, abordando todas as categorias do automobilismo Mundial e uma grande atenção no automobilismo local, em particular o Rally. NdG: O Rally é realmente uma grande paixão em seu país, não? Pedro Lamy: Sim, com certeza. Há aquela coisa dos carros serem muito parecidos com os carros que estão nas ruas e tem também a proximidade com o público que assiste as corridas quase de dentro da pista, no caso, nas margens das estradas. Isto leva pessoas a ter o desejo de participar e há possibilidades para tal. NdG: O fato de ter vencido em Le Mans, depois de ter deixado a F1, de tudo que passou com seus acidentes, causou que efeito em Portugal? Pedro Lamy: Foram três grandes corridas. Vencer na categoria GTE-Am e chegar duas vezes em segundo com os protótipos foram muito importantes na minha vida. Não sei como é a projeção do campeonato Mundial de Endurance aqui no Brasil, como por exemplo foi celebrada a vitória do Jaime Melo em Le Mans, mas lá em Portugal foi muito considerado. Le Mans é um mito e há uma corrida apenas por ano. NdG:Você corre atualmente na equipe GTE-Am na Aston Martin, que também tem carros na categoria GTE-Pro. Tem a questão da equalização pela categoria de pilotos, que vai de bronze à Platina, mas porque a opção pela Am? Pedro Lamy: A gente tem que ver as possibilidades, as oportunidades que se apresentam e fazer a melhor escolha sempre. Quando se é um piloto profissional e vive-se disso na vida para ganhar dinheiro é preciso se levar em conta as vantagens financeiras que um contrato ou outro te oferecem. Alguns pilotos estão em carros de categorias maiores, de mais visibilidade, mas muitos são pilotos que levam patrocínios para o time e, no meu caso, não tenho que fazer isso. Sou pago pela equipe para correr e dentro da estratégia da equipe, que tem vários pilotos sob contrato, eles achando por bem me colocar num carro da GTE-Am não é nenhum problema. NdG: No Campeonato Mundial de Endurance corre-se provas de 6 horas. As vezes em trio, as vezes em dupla. Isso quer dizer que são turnos totais de duas a três horas de pilotagem em alta velocidade, em nível de exigência extremo. Como é a tua preparação física e a tua alimentação para estar em tão boa forma? Qualquer coisas na qual você correr fora da Fórmula 1 será mais lento, mas isso não implica em ser mais fácil. Pedro Lamy: Eu procuro fazer atividades físicas variadas. Não gosto muito de ir para academia ficar trabalhando com pesos. Gosto muito de andar de bicicleta, também corro, mas não tenho nenhum programa de preparação específico para tal. Quanto à alimentação, como de tudo, sem problemas, apenas cuido para não comer demais e não engordar. NdG: Há algum tempo vemos os carros híbridos no Campeonato Mundial de Endurance. Neste ano esta busca por sistemas alternativos chegou com ainda mais força na F1, que já tinha o KERS também há algum tempo e temos neste ano a primeira temporada da Fórmula E. Como você vê esta revolução tecnológica no automobilismo? Pedro Lamy: Eu vivi o começo deste processo quando pilotei para a Peugeot nos protótipos e vejo como uma evolução natural do esporte. Além disso, as fabricas envolvidas estão a buscar soluções comerciais para seus negócios no futuro. Aonde iremos chegar eu não sei, mas a Fórmula E está aí com seus carros sem motores... espero continuar em atividade para viver mais destas mudanças. |