A 5 de março de 1986, o Rali de Portugal teve aquilo que mais temia na sua história: um acidente mortal. Os anos em que os espectadores pareciam estar prestes a descontrolar-se perante máquinas cada vez mais velozes, onde se desviavam no último momento, em busca de adrenalina, tiveram o seu trágico final nesse dia, na serra de Sintra, com três mortos e o boicote dos pilotos de fábrica ao resto do rali, alegando que as coisas já estavam a ir longe demais em termos de tecnologia e de segurança. A decisão era esperada, mas contestada até aos mais altos cargos da FIA. Jean-Marie Balestre não gostou da decisão, elogiando a organização pelas ações tomadas na altura. Contudo, menos de dois meses depois, a 2 de maio, durante a Volta à Corsega, os restos calcinados do Lancia Delta S4 de Henri Toivonen e Sergio Cresto fizeram com que a entidade máxima do automobilismo voltasse atrás e decidisse banir os Grupo B em favor dos Grupo A, mais próximos dos carros de produção. Trinta anos mais tarde, vamos contar a história que levou a este momento trágico no automobilismo. UM CLÁSSICO DOS RALIS Primeiro que tudo, o Rali de Portugal é um dos poucos que fazem parte do calendário original do Mundial, iniciado em 1973. Esse calendário, para além do Rali de Monte Carlo, tinha também os ralis da Acrópole, na Grécia, o Rali de Sanremo, em Itália, o rali Safari, no Quénia, e o Rali dos Mil Lagos, na Finlândia, entre outros. Sendo um dos poucos eventos que colocava Portugal no mapa do desporto motorizado, atraia multidões por onde passava, ao longo do país. Desde a sua partida, em Lisboa, até a Fafe, no norte do país, passando por zonas como Arganil, Figueiró dos Vinhos e Viseu, no centro do país, centenas de milhares de pessoas assistiam nas bermas da estrada a passagem de carros velozes como o Ford Escort RS1800, o Fiat 131, o Talbot Sunbeam Lotus, Lancia Stratos – e depois o 037 - o Peugeot 205 Turbo ou o Audi Quattro. O público se colocava em risco de vida nas competições de rali, ficando perto demais dos carros. Contudo, o comportamento dos espetadores muitas vezes deixava a desejar. Temerários ou simplesmente estúpidos, milhares de jovens arriscavam a vida para ver os carros o mais perto possível, somente se desviando dos carros no último momento, colocando sempre os pilotos com o coração nas mãos e manter a concentração em níveis muito elevados, pois para além de tentarem evitar as bermas, tinham também de evitar os espetadores. Uma pequena história proveniente desse tempo: um grupo de rapazes tinha apostado entre eles quem era capaz de tocar em um dos carros que passavam na subida à Lagoa Azul. Quando foi a vez de passar o Audi Quattro do finlandês Hannu Mikkola, com os seus 600 cavalos a voar baixinho, um dos apostadores resolveu mesmo tentar tocar no carro! Conclusão: Mikkola seguiu para o fim da classificativa sem problemas e o “espertalhão” para o hospital de Cascais, com a mão partida. Em 1986, estava-se em plena era dos “grupo B”, carros ultra-potentes com motores Turbo e com uma relação peso/potência desequilibrado: havia carros com cerca de 500 quilos e potências superiores a 800 cavalos. Contudo, a escolha de carros era rica e vasta: Para além da Audi, Peugeot e Lancia, estavam também a MG, com o seu Austin Metro Turbo, e a Ford com o RS200 Turbo (estreado na prova anterior, na Suécia), e a Renault, com o seu modelo 5 Turbo, entre outros. Essa combinação começava a ser explosiva e os pilotos começavam crescentemente a queixar-se de que não conseguiam controlar esses carros. Conta-se a lenda que quando a Lancia colocou o seu piloto Henri Toivonen a dar algumas voltas ao Circuito do Estoril, nos dias anteriores ao rali, o seu melhor tempo teria dado um lugar na terceira fila da grelha de partida do Grande Prémio de Formula 1, que acabaria por acontecer em setembro desse ano… Marko Allen e seu Lancia eram dominadores da categoria. A primeira etapa do rali era feita na zona da Serra de Sintra, nos arredores de Lisboa. Três passagens feitas na zona da Lagoa Azul, nos arredores da pitoresca vila, atraiam uma larga população, que queria ver os velozes carros a passar sobre as estradas asfaltadas da zona florestal. Segundo a polícia, naquele ano estariam cerca de meio milhão de pessoas, e estes tinham muita dificuldade em controlar essa multidão. O CARRO MAIS POTENTE DE PORTUGAL Nesse dia 5 de Março, a primeira etapa consistiam em duas passagens pela Serra de Sintra, de manhã e de tarde, e numa estrada muito estreita, a multidão acumulava-se nas bermas, numa posição perigosa. O primeiro aviso tinha sido dado quando o finlandês Timo Salonen, campeão do mundo em título, tocou com o seu Peugeot 205 um espetador no início da primeira classificativa da primeira passagem. O Ford RS 200 era um dos favoritos para a temporada daquele ano. Nas primeiras três classificativas, as coisas estavam ao rubro. Henri Toivonen, Massimo Biasion e Markku Alen, todos pela Lancia, lutavam pelo comando, contra o Audi de Walter Rohrl e os Peugeot de Timo Salonen e Juha Kankunnen, os Austin de Tony Pond e Malcom Wilson e os Ford RS200 de Stig Blomqvist e Kally Grundel, e os pilotos locais tentavam acompanhar os oficiais: Joaquim Moutinho, no seu Renault 5 Turbo e Joaquim Santos, num Ford RS200. Um pequeno parêntesis para falar sobre o panorama nacional dos ralis. Nessa altura existiam duas grandes equipas: a Diabolique e a Renault Portuguesa. A Diabolique era uma aventura de um médico do Porto, Miguel Oliveira, que era um enorme entusiasta do automobilismo, tinha encontrado o piloto ideal na figura de Joaquim Santos. Começando nem meados da década de 70, eram fiéis à Ford, graças aos seus modelos Escort. Santos era um excelente piloto e muitas vezes era o melhor português numa prova dessa dimensão, e muitas vezes conseguiam bons resultados. Em contraste, Moutinho, outro piloto nortenho, tinha consigo um Renault 5 Turbo que pertencia à representação nacional da marca do losango. Nesses anos 80, tirando as entradas de pilotos como Jorge Otigão ou Carlos Bica, o duelo pelo campeonato nacional era muitas vezes uma “batalha” entre Santos e Moutinho, com este último a levar a melhor, porque graças à fidelidade da Diabolique à Ford, andavam com um RS1800 já datado, porque a Ford tinha perdido o comboio da evolução dos Grupo B. Contudo, em 1986, a Ford tinha apresentado o RS200, e Santos (e a Diabolique) precisavam de ter uma unidade preparada o mais depressa possível. O rali de Portugal era o segundo onde esses carros iriam andar, e Santos não teve muito tempo para se adaptar ao carro, que era diferente em todos os aspectos, a começar pelo motor, que estava atrás do condutor e do navegador. Para ele, isto seria um rali de adaptação. O Renault 5 Turbo era um carro rapidíssimo e muito potente. Mas tinha conseguido o que queria: ele era o primeiro piloto português a ter um puro carro de Grupo B, pois o Renault 5 Turbo, apesar de ter no seu palmarés vitórias em ralis como a Córsega e Monte Carlo, não era um verdadeiro Grupo B. Anos depois, numa (muito) rara entrevista a um documentário da BBC, Miguel Oliveira afirmou sobre aquele tempo: “Tinha um bom carro, tinha um bom piloto, considerava-me um bom navegador, e tínhamos ali uma grande chance de competir contra os melhores”. Pelo menos na categoria de melhor português, Santos era o claro favorito. Mas iria andar todo o rali a adaptar-se ao carro. ANATOMIA DE UM DESASTRE Na primeira classificativa, Joaquim Santos – carro numero 15 - andava a adaptar-se ao Ford RS200, recém-adquirido à fábrica e que serviria para o campeonato nacional de ralis, competindo contra Moutinho (carro imediatamente à frente, o 14) e Carlos Bica (que andava nesse rali num Lancia 037), os seus rivais mais diretos. E foi nessa altura de adaptação que a tragédia aconteceu. A meio da primeira especial, Santos perde o controlo do seu carro - uns falam por tentar evitar um espetador, outros falam que passou por uma zona húmida e perdeu aderência – e embate de frente contra um grupo de espetadores. Trinta e três pessoas ficaram feridas, e duas pessoas, uma mulher e o seu filho de nove anos, acabaram por morrer. Uma terceira pessoa acabaria por morrer mais tarde, num hospital de Lisboa. Miguel Oliveira diz sobre esse momento: “Houve uma pessoa que se colocou dentro da estrada e ele [Joaquim Santos] teve de corrigir a trajetória. E com isso, ele perdeu o controlo”. “Ele estava em choque, totalmente em choque. Depois saiu do carro, foi para o meio da estrada, com os olhos esbugalhados e só perguntava: ‘O que aconteceu? Porque é que aconteceu?’” A prova foi interrompida nesse local, mas a organização decidiu prosseguir o rali até ao final da manhã, pois quando aconteceu, os pilotos da frente já estavam a fazer a terceira especial. A gravidade do acidente que atingiu o público provocou muitas vítimas entre os espetadores. Quando foram informados do sucedido, no Autódromo do Estoril – o centro nevrálgico do rali - os pilotos reagiram de imediato: iriam boicotar a prova. Reunidos no final do dia no Hotel Estoril-Sol, decidiram pelo abandono voluntário, em gesto de protesto pela impotência da organização em assegurar as condições mínimas de segurança. O comunicado oficial foi lido à imprensa por Henri Toivonen: «As razões pelas quais os pilotos abaixo assinados não desejam prosseguir o Rali de Portugal são as seguintes: 1 – Como uma forma de respeito pelas famílias dos mortos e dos feridos; 2 – Trata-se de uma situação muito especial aqui em Portugal: sentimos que é impossível para nós garantir a segurança dos espectadores; 3 – O acidente no primeiro troço cronometrado foi causado por um piloto que tentou evitar espectadores que estavam na estrada. Não se ficou a dever ao tipo de carro nem à sua velocidade; 4 – Esperamos que o nosso desporto possa beneficiar futuramente com esta decisão.» O diretor de prova, César Torres, aceitou as razões invocadas pelos pilotos, mas não culpou totalmente os espectadores pelo que aconteceu. Numa entrevista a uma TV francesa, comentou: “O problema é que o público deveria saber-se comportar numa prova destas. Eles [os pilotos] não podem ser responsabilizados por algo do qual tem pouco controle, porque isso significaria o final das corridas de rali. Não poderemos meter-nos num risco tão grande”. As consequências do acidente foram graves e fruto de discussões em Portugal e na FIA. Algo que Miguel Oliveira corroborou, anos depois: “Não foi nossa culpa, nem minha, nem do piloto. Foi um acidente à espera de acontecer. Os culpados – a haver um culpado – é a organização, que falhou na sua tarefa de providenciar a segurança aos pilotos, controlando os espectadores”. O ESPECTÁCULO TEM DE CONTINUAR Assim sendo, a organização decidiu anular os troços de Sintra e o rali prosseguiu um pouco mais a norte, no Gradil, arredores de Lisboa. A paetir dali, os pilotos locais dominaram os acontecimentos, num duelo entre Joaquim Moutinho e Carlos Bica, este num Lancia 037. Moutinho acabou por vencer, no seu Renault 5 Turbo, tornando-se no primeiro – e único até agora – piloto português a ganhar uma prova do mundial de Ralis. Mas os acontecimentos da Serra de Sintra tiveram impato: as classificativas tinham muito menos espetadores. No final do rali, as criticas eram muitas, mas a maior autoridade do automobilismo mundial decidiu avaliar de forma contrária. Jean-Marie Balestre, o todo-poderoso presidente da FISA, detestara a atitude dos pilotos no sentido do boicote e escreveu depois uma carta à organização, aplaudindo a decisão tomada de continuar o rali com os pilotos nacionais e os privados que decidiram continuar, recriminando os pilotos de fábrica pela sua atitude. Mas houve consequências imediatas: a Audi decidiu que aquele rali de Portugal iria ser o seu último. E o seu regresso não acontecerá enquanto estiver a Volkswagen a dominar as classificativas do Mundial. Poucas semanas depois, outro acidente, desta vez no Rally da Córsega pôs fim ao Grupo B. Menos de dois meses depois, na Córsega, a FIA teria uma atitude totalmente diferente, quando Henri Toivonen, o piloto que serviu de porta-voz para anunciar o boicote dos pilotos ao rali português, acabava no fundo de uma ravina na ilha da Corsega. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira
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