O automobilismo argentino nos dá – há alguns anos – um bom exemplo de que é possível se fazer um automobilismo nacional forte, independente das influências internacionais e com bom planejamento e o suporte das montadores, manter um processo de formação e aperfeiçoamento de pilotos, fazendo das suas competições, grandes eventos. Fruto de uma excelente geração de pilotos onde se destacam junto com ele Jose Maria Lopez, Mathias Rossi, Mariano Werner (entre outros), Nestor Girolami assumiu em 2016 um desafio que nenhum outro piloto argentino decidiu encarar: uma temporada completa em nossa principal categoria de carros de turismo. Este cordobês (na verdade, nascido na pequena cidade de Isla Verde, com cerca de 5000 habitantes) conquistou a Argentina, depois de algumas temporadas na mítica categoria de Turismo Carretera, foi para a moderna Super TC 2000 e conquistou o bicampeonato 2014/2015. Tendo se aventurado em algumas corridas no WTCC, este ano está disputando a temporada completa na Stock Car pela equipe do experiente Carlos Alves ao lado do gaúcho Vitor Genz. Entre um treino e outro, “Bebu”, como é carinhosamente chamado por seus familiares e um apelido que se popularizou, com muita atenção e simpatia nos concedeu esta ótima entrevista. NdG: Todos os pilotos argentinos que conhecemos tem um apelido (Lole para Reutemann, Cocho e Pechito para pai e filho da família Lopez e por aí vai). O seu é “Bebu” O que quer dizer “Bebu” e porque te chamam assim? Nestor Girolami: Foi a minha avó quem começou a me chamar assim. É um apelido muito antigo na Argentina e quer dizer “cara de criança” e quando eu fui para a escola, ouviam meus pais me chamando assim. Quando comecei a correr, a mesma coisa e todos foram passando a me chamar assim “Bebu”, com a primeira sílaba mais forte. Acho que é um bom apelido. Dizem que eu tenho cara de criança até hoje (risos). NdG: E como o automobilismo entrou na sua vida? Na verdade, na vida da família Girolami, já que você tem um irmão que também é piloto... Nestor Girolami: O meu pai sempre gostou de automobilismo. É um esporte muito popular na Argentina. Ele não foi piloto, mas quando eu tinha quatro anos ele me presenteou com um kart e eu gostei daquele brinquedo e fui aprendendo a pilotá-lo e indo cada vez mais rápido, até que acabei por começar a competir. Daí então não parei mais e meu irmão, Franco, também decidiu seguir este caminho. Foi algo que começou como uma brincadeira, mas que acabou se tornando uma opção de vida profissional. NdG: Depois do kart você correu alguns anos na Fórmula Renault, mas logo passou para os carros de turismo. Achou melhor, viu mais perspectivas, o que fez esta mudança? Temos muitas categorias na Argentina e todas muito competitivas. Há possibilidades para ser um profissional em todas elas. Nestor Girolami: Em se tratando de automobilismo na Argentina é algo natural. Temos muitas categorias de turismo por lá e todas muito competitivas, que permitem o piloto a ser um profissional e eu queria ser piloto profissional. Mas para se dar bem, tem que se adaptar rápido, porque é tudo muito competitivo. A diferença do fórmula para o carro de turismo é muito grande e nem todos se adaptam fácil. Senta-se mais alto, o cockpit fechado diminui tua visibilidade, os pontos de frenagem, as referências que você tinha da pista são completamente diferentes. Acho que ter ficado pouco tempo nos fórmulas me ajudou. Acredito que se o piloto fica muito tempo andando de fórmula, leva mais tempo para se adaptar aos carros de turismo. Outra coisa é que o tempo parece passar mais devagar num carro de turismo, dá tempo pra pensar melhor os movimentos, as tomadas... sinceramente, eu gosto mais dos carros de fórmula. São mais rápidos, exigem mais reflexo do piloto. Infelizmente para nós aqui no continente não dá pra ter uma categoria de fórmula de primeira linha. São carros caros, que exigem muita tecnologia, os componente vem de longe, normalmente da Europa e sem apoio governamental não há como se fazer algo neste sentido. NdG: Aqui no Brasil 9 entre 10 garotos (e garotas) vão para o kart pensando na F1. Na Argentina é assim também ou lá se pensa diferente? Nestor Girolami: Quando se é uma criança sempre vai haver este sonho de Fórmula 1, mas quando você cresce e vai vendo as perspectivas e a realidade, acaba chegando à conclusão de que a Fórmula 1 é algo quase impossível... especialmente para nós, pilotos latino americanos. É triste, mas para nós da América Latina conseguir financiar um desenvolvimento de carreira na Europa, com um câmbio sempre muito desfavorável, com a obrigação de dar um resultado praticamente imediato a quem investiu no patrocínio do teu sonho é algo cada vez mais difícil e quando se tem o sonho de ser piloto profissional e vemos outras possibilidades, economicamente mais realistas, deixamos o sonho de lado e vivemos a realidade. NdG: Aqui no Brasil, nossos grandes pilotos serviram e ainda hoje servem de inspiração para estes meninos que começam a correr. No Caso se Ayrton Senna, que morreu na pista, sua mitificação ainda alimenta este desejo. Na Argentina, Juan Manuel Fangio desperta este tipo de inspiração? Nestor Girolami: O Fangio sempre será uma inspiração para os pilotos argentinos e por sua história para qualquer garoto que começar a correr. Ouvir falar em Juan Manuel Fangio será uma das primeiras coisas que ele ouvirá. Contudo, a realidade de Fangio já está ficando um pouco distante. Ele foi penta campeão mundial nos anos 50. A minha geração teve mais influência dos feitos de Carlos Reutemann, de quem conhecemos muito mais fatos da carreira. NdG: Na Argentina existe um Associação dos pilotos, a AAV (Associación Argentina de Volantes). Você é associado? Como é o trabalho da AAV para vocês, pilotos argentinos em atividade? Fangio sempre será uma inspiração para nós, mas a minha geração ouviu mais e se inspirou mais em Reutemann. Nestor Girolami: a AAV é uma instituição muito forte dentro da Argentina, indo além do está apena o automobilismo e nos dá uma segurança e uma tranquilidade muito grande para fazer nosso trabalho porque eles estão sempre cuidando dos assuntos referentes aos nossos interesses no automobilismo. Seu presidente, Juan Maria Traverso foi piloto por muitos anos e sabe bem quais as necessidades que temos e é de enorme importância que haja sempre um piloto envolvido nos assuntos que dizem respeito a administração, a segurança e aos reais interesses daqueles que estão na pista e, no nosso caso, com a força e o respeito que a nossa associação possui, sinto-me seguro para fazer o meu trabalho. Você pode ter um excelente gestor, formado nas melhores universidades, mas só vai realmente entender o que é a vida dentro do automobilismo se tiver sido piloto e o que precisamos realmente. A AAV tem isso: tem bons gestores e bons pilotos trabalhando juntos para nós todos. Aqui no Brasil os pilotos estão começando um movimento assim, com uma associação e eu espero que dê certo e venha a ser tão boa quanto a nossa. NdG: Certamente isso é parte importante do que faz o automobilismo argentino ser tão forte. Mas, além disso, o que vocês fazem por lá que seria um bom exemplo para nós? Nestor Girolami: Acho que o fato de um piloto dificilmente encontrar apoio para ir correr fora e ver que pode se profissionalizar e ganhar dinheiro em seu país faz com que todos os bons pilotos fiquem por lá e quando não se tem um “automobilismo de exportação” o automobilismo interno, quando bem apoiado, incentivado, tenderá a crescer e ficar forte. Veja o caso dos Estados Unidos. Os pilotos de lá não tem interesse em correr fora e se corre de tudo. Na Argentina temos seis grandes categorias de turismo que enchem os autódromos, que tem bons grids e bons pilotos na disputa. NdG: Sim, mas depois de Carlos Reutemann nós temos o sucesso de Pechito Lopez no WTCC. Isso pode vir a provocar uma mudança nesta visão interna dos pilotos argentinos? Afinal, você mesmo está aqui e fez corridas no WTCC... Nestor Girolami: Vai depender muito de cada um, é algo muito pessoal. Acho que o Jose Maria [Lopez] fez um belíssimo trabalho, conseguiu ganhar três campeonatos mundiais FIA com o WTCC e eu penso que isso abriu uma porta muito grande para os pilotos argentinos no exterior. Contudo, é um passo que quem estiver pensando em dar, certamente estará pensando com muito cuidado. Ele tem uma condição de trabalho e retorno seguro na Argentina e deixar esta “zona de conforto” para desafiar e se desafiar fora dela, em outro país ou outros continentes e as coisas podem dar certo ou não. É como uma freada depois do limite para se fazer uma ultrapassagem: há sempre o risco de se sair da pista e perder aquilo que já tinha nas mãos, mas mesmo quem fizer isso e não tiver o sucesso que espera, também vai ganhar porque terá vivido uma experiência, um aprendizado. NdG: Você está correndo este risco no momento, fazendo a temporada completa da Stock Car e tem corrido algumas etapas do WTCC. Como você está vendo, pessoalmente, esta experiência? A AAV - Associação Argentina de Volantes - é um orgão muito forte e faz muito por nós, pilotos. Espero qua aqui aconteça o mesmo. Nestor Girolami: É um desafio muito grande correr com uma equipe brasileira uma temporada completa e virá uma outra ano que vem. Corri em uma grande equipe na Argentina por dois anos, fui bicampeão da Super TC2000, disputando também com grandes pilotos, um campeonato igualmente muito forte, mas acho que sempre, para crescer, é preciso sair da zona de conforto. Fazer todo o campeonato da Stock Car é como um desafio pessoal. Conheço vários pilotos que estão aqui e já correram na Argentina e o nível é muito alto, a distância entre os carros é muito pequena e há muita competitividade. Também estou dando meus passos no WTCC, que tem sido outra experiência fantástica com a equipe Volvo. Estamos nos dando muito bem e conquistamos juntos este ano o melhor resultado do time. A natureza de cada um é diferente e eu gosto de enfrentar novos desafios porque isso é uma maneira de se crescer profissionalmente. NdG: E destes anos de Stock Car que você está completando, como você viu esta temporada que já está perto do fim? A competitividade, os acidentes, os resultados... já dá pra fazer um balanço? Nestor Girolami: A Stock Car é uma categoria muito competitiva, com as equipes muito próximas umas das outras e o nível dos pilotos é excelente. É fácil dizer que tem 10 ou 15 candidatos à vitória todas as corridas e as disputas são muito duras, mas são limpas. Eu gostei muito do carro da categoria. Já o havia conhecido no ano passado, quando disputei a corrida de duplas com Ricardo Maurício, e é um carro muito mais desenvolvido, tecnologicamente falando, se comparado aos carros da TC2000. É uma categoria que merecia correr em melhores autódromos. No Brasil tem Interlagos, Curitiba que são muito bons. Tem outros mais ou menos e o restante está abaixo. NdG: Correndo no WTCC corre-se em autódromos de nível internacional. Você achou alguns dos autódromos aqui no Brasil inseguros ou ruins? O que pode ser feito para melhorá-los? Nestor Girolami: Não é uma crítica ao autódromos do Brasil. Na Argentina vivemos a mesma coisa. Temos Potrero de los Funes, Termas de Rio Hondo e San Luis... e o resto está abaixo. Buenos Aires que deveria ser o melhor de todos vive uma situação difícil. No WTCC corremos em ótimos autódromos e nossos automobilismos no Brasil e Argentina mereciam correr também. Acho que se deveria ter menos autódromos, mas todos bons e bem seguros do que muitos e não tão bons. Eu gosto de poder tirar o máximo que o equipamento, o carro, pode proporcionar e vi aqui problemas semelhantes aos que temos na Argentina, com autódromos em que os pilotos correm, mas que precisavam ser mais seguros. Quando falo segurança é mais do que áreas de escape e barreiras de pneus. A Fórmula 1 corre em Mônaco, sem áreas de escape e os carros passam dos 250 Km/h, mas existem procedimentos de segurança lá. NdG: Você é o primeiro argentino que veio fazer uma temporada completa na Stock Car. Isso despertou a curiosidade da imprensa local e dos pilotos? Como isso está sendo visto por lá? Os autódromos aqui no Brasil e na Argentina precisavam melhorar em termos de condições e segurança. Temos poucos bons. Nestor Girolami: Os pilotos argentinos tem perguntado bastante, sim. Eles gostam da Stock Car. Alguns já vieram correr aqui nas corridas de duplas assim como vários pilotos brasileiros já participaram em nossas corridas de duplas na Argentina. Uma coisa que falamos lá é que os promotores poderiam trabalhar em conjunto, para que os calendários não coincidam e possamos assim ter mais argentinos interessados em disputar o campeonato da Stock Car e também termos brasileiros disputando o TC2000, fazendo a temporada completa. Seria algo bom para todos. Se Mauricio Slaviero e Antonio Agracian (Presidente da TC 2000) sentassem para conversar sobre isso e tentar chegar num acordo para não coincidir datas seria muito bom. NdG: Você correu alguns anos na Turismo Carretera e elas correm circuitos que a TC2000 não corre. Qual teu circuito favorito na Argentina? Você chegou a correr em Balcarce, na terra do Fangio? Nestor Girolami: Meu circuito favorito é sem dúvidas o de Potrero de Los Funes. É um circuito de mais de 5 mil metros, com curvas desafiadoras e difíceis de memorizar. É muito seguro e é o melhor circuito da Argentina, o mais técnico. O circuito de Balcarce eu conheço de ouvir falar. Nunca corri lá, mesmo nos anos de Turismo Carretera. O que ouvi é que se tratava de uma pista perigosa, sem áreas de escape e com possibilidades de muita velocidade o autódromo de San Juan, Eduardo Copello lembra o de Balcarce, com um “8” e muito rápido, mas tem algumas áreas de escape. NdG: Quando falamos com pessoas mais velhas na Argentina eles sempre falam da Turismo Carretera com muito entusiasmo. Apesar de categorias com a Top Race V6 e as TC e Super TC2000 ferem mais tecnológicas, mas modernas, as carreteras parecem oferecer um fascínio sobre o público. O que “é” esta categoria? Nestor Girolami: Como piloto não é uma categoria que me atraia muito porque antes da largada você já sabe quem vai ganhar a corrida. Há muita “liberdade” no regulamento e isso permita que aconteçam coisas que não deveriam acontecer e este ainda sofre mudanças no meio das temporadas as vezes. Então é uma coisa que não gosto muito por não haver uma transparência e isso não é legal. O público vai, acompanha... na Argentina o público vai assistir as corridas e tem aqueles modelos mais antigos. Eu gosto mais da tecnologia, com carrocerias mais modernas e os carros da Turismo Carretera não são tão seguros quanto um TC2000 ou um Stock Car. NdG: Acompanhando corridas na Europa, vez por outra encontramos um argentino, mas não vemos isso em relação ao automobilismo dos Estados Unidos. A Fórmula Indy e a NASCAR não despertam interesse na Argentina? Eu gosto mais dos carros de Fórmula. São mais rápidos, exigem mais reflexos do piloto, mas tinha que mudar para me profissionalizar, Nestor Girolami: Acho que é cultural. Nosso automobilismo é muito forte internamente e o dos Estados Unidos também. Nunca olhamos muito para eles, é verdade, como ele não olham muito para os outros. Como o custo de se tentar uma carreira internacional via Estados Unidos é significativamente mais barata, acho que deveríamos olhar com mais atenção as categorias por lá, especialmente as de Fórmula, uma vez que eles tem algumas e podem levar às 500 Milhas de Indianápolis que é uma corrida muito famosa. NdG: Como andam os planos para 2017? Nestor Girolami: Minha ideia é fazer as temporadas da Stock Car e da STC2000 na Argentina e, se houver uma proposta interessante de uma equipe de fábrica, sem conflito de datas, correr o WTCC.
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