Há tempos repetimos – tristemente – como o Brasil é um país sem memória e que nós temos como missão resgatar, preservar e difundi-la. Aos que acompanham a velocidade, o automobilismo e suas principais categorias, ver os autódromos como verdadeiros palcos, praças de eventos que beiram a perfeição é algo por um lado louvável, por outro é dúbio. Ao longo dos últimos anos fomos tomados pela “onda Tilke”, com os projetos do alemão se espalhando pelos quatro cantos e chegando a ser, alguns anos atrás, palco de metade dos GPs de Fórmula 1. O que quase ninguém sabe é que, durante os anos 80, duas das melhores corridas, em termos de emoção e de excelência de projetos em seus traçados eram fruto da pena e da mente de um arquiteto e engenheiro brasileiro: Ayrton João Cornelsen. Natural de Curitiba, sagaz e dinâmico, mesmo estando quase com 95 anos, tem em sua casa, bem próximo ao centro de Curitiba, onde vive com sua esposa, Sra. Cleusa Lupion, com quem casou-se em 1948, um escritório repleto de projetos e pinturas, hobby que se dedica há décadas. A mente ativa e o raciocínio rápido vão desde as lembranças como jogador do Clube Atlético Paranaense, onde conquistou algumas vezes o campeonato estadual de futebol, às aulas e a reverência ao urbanista Alfred Agache, que fez o planejamento urbano da cidade de Curitiba, ainda hoje chamada de cidade modelo, apesar dos desvios ocorridos ao longo dos últimos anos. Foi em seu jardim que Lolô – como é conhecido no meio – nos recebeu para esta história entrevista. NdG: O senhor tem em seu currículo como engenheiro e arquiteto grandes projetos, alguns no meio esportivo. Desenvolver este tipo de projeto era mais estimulante, mais desafiador para o senhor? Lolô Cornelsen: Eu sempre fui apaixonado por desenho. Foi o desenho que me levou para a arquitetura, só que aqui em Curitiba não havia faculdade de arquitetura naquela época, nos anos 40, então eu acabei estudando engenharia. Assim, me formei primeiro engenheiro, depois tive que ir para o Rio de Janeiro e complementar os estudos para ser também arquiteto. Mas esta parte foi fácil. Só faltavam duas cadeiras e assim pude ter um diploma daquilo que eu mais gostava e gosto que é a arquitetura. Eu trabalhei na secretaria de obras, como seria chamada hoje, o órgão do governo e tive o prazer e a honra de trabalhar com Alfred Agache. Foi ele que fez com que eu me apaixonasse por arquitetura e eu fui vendo sempre grandes projetos nesta época. Acabou sendo uma consequência. NdG: Destes grandes projetos que o senhor se envolveu, o que era mais desafiante? Comecei a trabalhar com Alfred Agache tinha 18 anos. Estudava engenharia e ele me fez apaixonar-me por Arquitetura. Lolô Cornelsen: Sem dúvida eram as estradas. Quando eu fui secretário de transporte, estive à frente da pavimentação de mais de 400 Km de estradas no nosso estado. E não tinham as máquinas que temos hoje. Não era fácil fazer aquilo. Na época nós avaliamos e vimos que o quilômetro asfaltado, caso contratássemos uma empreiteira, sairia muito caro. Decidimos tocar o projeto nós mesmos. Então eu criei dentro do departamento de estradas e rodagem uma estrutura capaz de fazer este trabalho e isso foi fundamental para o desenvolvimento do nosso estado. NdG: Essa experiência e aprendizado na construção de estradas acabaram sendo muito uteis para uma outra série de projetos que o senhor desenvolveu, que foram os autódromos, não? Lolô Cornelsen: Sim e não. Compreender o processo de análise de solo, correções, sistemas de drenagem para a água não empoçar numa estrada é uma questão de segurança. Em um autódromo também, mas no caso do autódromo, o tipo de pavimentação é outro. É preciso que o asfalto do autódromo proporcione um maior atrito dos pneus com a pista, enquanto uma estrada este atrito precisa ser menor, para não provocar um desgaste excessivo dos pneus. No autódromo, o carro tem que ter atrito, principalmente nas curvas, para andar o mais rápido que puder. Eu tive a oportunidade de fazer autódromos em três continentes: aqui no Brasil, na Europa e na África. NdG: O senhor foi o responsável pelo projeto do autódromo que hoje leva o nome de Autódromo Internacional de Curitiba. Como foi que a ideia do autódromo chegou ao senhor? Lolô Cornelsen: Eu tinha uma chácara em Piraquara, que era também da família e não é longe do local onde fizeram o autódromo, porque Pinhais é um município muito pequeno e aquela área onde PE o autódromo, se fazendo um autódromo aí, ia valorizar tudo em volta e no projeto do autódromo, foi feito um projeto para se lotear a área em volta, porque valoriza. O Flavio Chagas Lima tinha sociedade comigo, mas depois que ele quis engolir tudo eu me separei dele e o autódromo ficou lá. NdG: Como foi a concepção, o estudo para fazer o autódromo ali onde ele foi feito. O que se precisou fazer no terreno, como o senhor traçou as linhas da pista? O projeto do autódromo de Curitiba não foi fácil. boa parte do terreno era um banhado e precisou ser corrigido. Lolô Cornelsen: O terreno ali precisou de um trabalho grande. Boa parte dele era banhado. Tem um canal que passa ali atrás da pista e o terreno ali teve que ser corrigido. O trabalho para fazer a drenagem também foi exigente, mas eu consegui fazer um trabalho bom. Vi algumas corridas lá, debaixo de muita chuva, a pista nunca alagou. A drenagem funcionou bem. Mas depois que tive que sair do Brasil, não voltei mais lá. As linhas da pista não foram difíceis de fazer. Fui usando as curvas de nível pra fazer uma pista que fosse boa pra se correr e procurei fazer uma reta grande, para se fazer corridas de quilômetro lançado. Uma coisa que fiz em todos os autódromos que projetei depois. NdG: Como assim “teve que sair do país”? Lolô Cornelsen: Eu fui chamado de comunista aqui em Curitiba... e eu era meio vermelho mesmo (risos), aí, quando o regime da ditadura endureceu, o Manoel Aranha, que tinha sido presidente do Clube Atlético Paranaense, onde eu tinha jogado futebol, disse que soube que iriam me prender, que a polícia vinha atrás de mim e aí ele me mandou para o Rio de Janeiro e de lá eu fui para Lisboa. Fui com toda a família e morei lá por muitos anos. Foi muito bom. Me desenvolvi bastante profissionalmente por lá e abri muitas oportunidades, inclusive fazendo alguns autódromos, estádios, projetos de urbanização... aprendi muito morando na Europa. NdG: Foi nesta época que o senhor fez o o autódromo do Estoril, que era um outro desafio, com um relevo mais acidentado, bem diferente do que temos aqui em Pinhais. Como foi que surgiu o convite para fazer o autódromo de lá? Lolô Cornelsen: Tudo depende da natureza do terreno, de trabalhar bem com as curvas de nível de uma maneira que as curvas possam ser bem feitas, tenham raios variáveis, tenham inclinação, que a drenagem funcione bem. Naquela corrida que o meu xará, Ayrton Senna, ganhou lá em Portugal, que choveu a corrida inteira, a pista ficou molhada, mas não formou poças d’água, porque a drenagem funcionou. Aquele autódromo foi feito um convite da Sra. Fernanda Pires da Silva, que era a dona dos terrenos onde ficaria a pista. Ele me levou até lá pra conhecer a área e eu tive várias reuniões com ela até chegarmos ao projeto final, dentro do que era exigido pela FIA, porque o autódromo era para receber corridas internacionais. Ali, além de fazer o projeto da pista, foi preciso fazer todo um projeto para os acessos, que eram precários e precisavam ser bons. Lá eu também fiz a reta do quilômetro lançado, mas muitas curvas não tive como fazer áreas de escape grandes como eu gostava porque o terreno era muito acidentado. NdG: Quando convidaram o senhor pra fazer o circuito de Jacarepaguá o senhor já estava conhecido pelos projetos anteriores, mas encontrou um novo desafio ali, não? Lolô Cornelsen: Cada projeto é um desafio novo, são condições diferentes de um lugar para o outro. Em pinhais eu tinha um terreno alagado, que precisava ser corrigido, tinha muita água. O terreno do autódromo do Estoril era mais acidentado, com curvas de nível que exigiram um projeto de acordo com este relevo, de solo bastante rochoso. Já em Jacarepaguá, tínhamos um solo muito arenoso e que tinha algumas lagoas, além de ser praticamente plano. Cada terreno tem uma particularidade e num projeto de autódromo é preciso se preocupar também em dar o máximo de visibilidade ao espectador. Tem que se dar prioridade para as pessoas que vão até lá assistir o espetáculo. Outro ponto é o estudo da incidência solar. Um autódromo é muito grande, diferente de um estádio de futebol, que é mais fácil de orientar para o sol não atrapalhar a visão dos jogadores. Num autódromo o sol não pode atrapalhar a visão dos pilotos. Isso é muito perigoso. NdG: Mas ali já havia um autódromo e tinha uns lagos nele, como foi que se deu o trabalho de alterar e corrigir a área? Um autódromo tem que ser projetado de forma a criar também em torno dele um espaço de uso rentável. Lolô Cornelsen: O autódromo de Jacarepaguá era uma iniciativa privada, de um pessoal de Santa Catarina, da família Müller, que foi para o Rio na década de 60 e era dona de toda aquela área onde foi feito o autódromo e por perto. Em relação a propriedade, a pista não ocupava nem 30% do terreno. O restante era para ser loteado e vendido, porque a área sempre valoriza quando se constrói um autódromo. Isso aconteceu em Curitiba, no Estoril, em Angola, em todo lugar. O Carlos Müller era quem estava à frente do negócio e queria fazer ali um complexo com marina, parques, todo um envolvimento para desenvolver a região. Depois a área foi desapropriada e passou a ser do governo, da prefeitura, não sei. Só sei que tudo o que foi feito agora está destruído. Isso é um crime. Não se pode destruir um projeto como aquele. NdG: Algum tempo atrás nós publicamos um artigo sobre segurança nos autódromos e na pesquisa sobre caixas de brita nós encontramos referências ao senhor. É verdade que foi uma criação sua? Lolô Cornelsen: É verdade, sim... mas vou contar a verdade para você: foi por acaso! Depois de fazer o autódromo do Estoril, fui convidado para fazer um autódromo em Angola, que ainda era colônia portuguesa. O Sr. Pinto Dias, um político importante foi até Portugal e a Sra. Fernanda Pires da Silva também tinha interesses por lá. Vieram com a proposta e eu fiz então o projeto, acompanhando a construção inteira do autódromo. As obras mal tinham terminado e resolveram fazer uma corrida inaugural, só que ainda havia muito maquinário na área e a máquina de fazer a moagem de pedras para a base do asfalto estava lá, no final da reta de 1 Km que eu também fiz lá, junto com alguns montes de brita. Retiramos o maquinário e a brita eu mandei espalhar depois do asfalto, antes do muro. Na corrida, que teve vários pilotos convidados, o Niki Lauda saiu da pista e parou na brita, que freou o carro. Todos vieram me entrevistar para saber de onde eu tive aquela ideia e Eu menti pra todo mundo dizendo que tinha sido uma ideia para dar mais segurança (risos). Eles acreditaram, mas foi por acaso... um acaso que deu certo. NdG: Há quanto tempo o senhor não vai no autódromo que o senhor projetou e construiu aqui? Lolô Cornelsen: (silêncio longo) Eu não sei. Acho que desde pouco depois que ele ficou pronto. Depois que o Flavio Chagas Lima ficou com tudo eu não quis saber mais. NdG: O autódromo passou por uma reforma em 1994 e quase foi vendido pra ser destruído no ano passado... Depois que o autódromo de Curitiba ficou pronto e eu saí da cidade, não voltei mais lá. Lolô Cornelsen: Mas ele ainda está funcionando? Que reforma fizeram? Estragaram o autódromo? Porque quando vão fazer reforma, nunca procuram que fez o projeto original e aí fazem um monte de porcaria e estraga o projeto. Isso devia ser crime, de colocar as pessoas na cadeia. Um projeto construído é como uma obra de arte, você não pode chegar simplesmente e modificar tudo. Isso é até uma desonra. NdG: O senhor assiste corridas pela televisão? Lolô Cornelsen: Deixei de ver há muito tempo. O barulho me deixa louco. Antigamente eu via, quando fiz os autódromos, assistia as corridas no autódromo mesmo. Lá no Estoril fiz um restaurante no projeto do autódromo e assisti a corrida de inauguração de lá. NdG: O senhor conhece os autódromos de hoje em dia? Lolô Cornelsen: Alguns deles eu conheço, de ver o projeto, estudar... cada um é um e quem projetou e quem construiu certamente levou em conta o tipo de terreno, a topografia da região, a questão social no entorno... eu tenho um livro da FIA com o desenho de um monte de autódromos. São todos feitos dentro de um regulamento, não tem como fazer diferente. O importante é saber fazer o entorno do autódromo, a urbanização, loteando e dando formas ao que vai ser construído em volta do autódromo. Se fizer um projeto bom, vai ter um retorno bom, vai ganhar dinheiro. NdG: O senhor continua ativo, de forma impressionante. O que o senhor tem feito em termos de projeto? Lolô Cornelsen: Venha comigo até meu escritório e veja. Eu troquei os autódromos por campos de golfe. É mais bonito, não tem asfalto, não tem barulho e todo mundo que joga é rico (risos). Fazer um bom projeto de campo de golfe dá muito dinheiro, porque você faz o campo e em torno dele faz os lotes para os praticantes fazerem suas casas em volta. É uma maravilha. Cada lote custa uma fortuna! NdG: Tem alguma coisa que o senhor gostaria de ainda fazer como arquiteto, engenheiro e urbanista? Lolô Cornelsen: Eu queria arrumar Curitiba. Melhorar a cidade. Todo mundo fala do Jaime Lerner, mas depois dele, acabaram com Curitiba. O plano de urbanização de Curitiba feito por Alfred Agache era perfeito, maravilhoso. Foi este homem que me fez querer estudar arquitetura. Comecei a trabalhar com ele quando tinha 18 anos. Aprendi muito com ele sendo estagiário enquanto estava na faculdade de engenharia. Do Jaime Lerner pra cá começaram a estragar a cidade e foi ficando cada vez pior. NdG: De onde vem tanta longevidade? Lolô Cornelsen: Acho que é a polenta que eu como... (risos)
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