No passado dia 21 de novembro, entrei enfim numa sala de cinema na cidade onde moro para poder ver "Le Mans'66, o Duelo", ou "Ford vs Ferrari". O filme, realizado por James Mangold, tem Christian Bale no papel de Ken Miles, e Matt Damon no de Carrol Shelby, o homem que fez os Cobra e apimentou o Mustang, que o chamou de "carro de secretária", quando foi apresentado ao bólido que iria marcar uma geração. Mas o bólido que domina o filme é o GT40, o carro que tem esse nome por causa da sua distância ao chão - 40 polegadas - e porque é o resultado de um desafio lançado por Enzo Ferrari, quando Henry Ford II quis comprar a Scuderia, e o Commendatore diz não, depois de ver as condições que apresentavam no seu contrato. Ainda me lembro da tempestade que houve por aqui quando falaram sobre "Rush", em 2013, onde havia quem dizia que o filme era uma treta porque não foi cem por cento verdadeiro. Se calhar, não repararam a razão porque escrevem nos anúncios "baseado numa história verdadeira". Há que vá ao engano quando lê essa frase, ignorando que eles preferem uma maioria de verdade, e não toda a verdade, porque isso estraga a narrativa. Se são fundamentalistas nesse campo, então é mais recomendável que vejam os documentários e leiam os livros, porque por ali, Hollywood nunca fará uma história totalmente verdadeira. O filme conta, de uma forma peculiar, com fatos reais e fictícios, um dos mais fantásticos episódios do esporte a motor. Para além disso, esta história tem de ser americana. De quando eles eram os "underdogs" e bateram uma equipa europeia dominante, no seu próprio quintal, na Europa. E em 1966, a prova com mais prestígio eram as 24 Horas de Le Mans, ainda antes da Formula 1 tomar conta das antenas e as mentes dos fãs do mundo inteiro. Não se vê a história do lado da Ferrari, é por isso que, por exemplo, não se vê um dos pilotos mais importantes da altura, o britânico John Surtees. Sabendo do que seria e o que fariam, resolvi escrever ao longo deste mês as circustâncias do duelo entre ambas as equipas, entre 1963 e 1966, de quem era Carrol Shelby e Ken Miles, de outros pilotos que andaram por ali a ajudar a desenvolver os carros. Aliás, o primeiro piloto a ser contratado foi Bruce McLaren, não Ken Miles, apesar de ser o piloto do qual Shelby confiava. Nisso, estavam corretos. E é isso o que este filme se trata: a relação humana entre duas personagens que tiveram carreiras no automobilismo, e que fizeram parte de uma das maiores aventuras automobilísticas, numa altura em que o céu era o limite. Nos anos 60, queriam ir á Lua e ter os carros mais potentes de estrada. Há uma cena onde Lee Iaccoca fala sobre isso numa reunião da Ford, que começa com “Sabem o que fizeram os nossos homens quando voltaram da guerra? Fizeram bebés. E agora eles chegam ao final da adolescência com dinheiro no bolso para comparar carros velozes”. É essa a essência do filme: capturar um tempo despreocupado que não volta mais. Claro que há imprecisões. Fazer de Leo Beebe o mau da fita é quase uma fição, apesar de ele reconhecer que nada sabia de automobilismo, e os engravatados de Dearborn não serem muito fãs de garagistas, fora do controlo das chefias e dos comitês (e outras burocracias). Mas há coisas que conseguiram acertar, que foi a razão porque Henry Ford II, o "the Deuce", ter ido à guerra. Acima, uma cena do filme e abaixo, uma cena da corrida de 1966. Muito do filme foi ficção, mas também houve realidade. A cena onde Enzo Ferrari lhe diz que não é o avô pode não ter existido "ipsis verbis", mas não ficaria admirado se tivesse acontecido. Deveria haver algo do qual tocou no nervo de Henry Ford e ter decidido "dar uma coça" a Ferrari, não importa quanto gastaria. Na realidade, todo o programa custou ao longo do resto da década cerca de 73 milhões de dólares, uma soma astronómica na época. Para ter uma comparação: a Ferrari poderá ter gasto cerca de 2 milhões de dólares. Em suma, quero dizer três coisas: primeiro, é um excelente filme. Tem uma bela fotografia, os cenários são ótimos, os carros - réplicas, diga-se de passagem, porque os originais valem milhões - são perfeitos à época. O segundo é para verem este filme de mente aberta. São duas horas e meia onde se vê a relação entre duas pessoas que têm sentido de missão do qual entrarão na história se forem bem-sucedidos, e se não, não são despedidos, mas sim mortos. E o terceiro, acho que, se qualquer dia quiserem fazer algo sobre isto, no seu todo, merece uma série, que deveria passar numa Netflix ou Amazon Prime da vida. E com ambos os lados a serem realmente retratados. Mas até lá, recomendo vivamente que leiam - caso consigam encontrar, claro - o "Go Like Hell", do A.J Baime, que fala sobre todos os pormenores desse duelo. E já agora, ao longo deste mês, escrevi uma série de artigos no meu blog onde contei com todos os pormenores o que foi realmente esse duelo, como começou, quem foram os pilotos envolvidos, os incidentes e acidentes, e as razões por trás da polémica decisão em Le Mans. E celebrem: não é todos os dias que Hollywood faz filmes sobre automobilismo. Imagem de como foi feita uma das várias cenas do filme. Os atores, não como Steve McQueen, não pilotaram pra valer. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira |