A pandemia do coronavirus pode fechar portas, mas abre janelas: à custa das corridas americanas - especialmente o Brasil, que ficará ausente do calendário após 48 anos - a Formula 1 regressa a Portugal depois de 24 anos de ausência. Curiosamente, será o mesmo tempo do qual não teve a visita da Formula 1 na primeira vez, entre 1960 e 84, quando correu pela primeira vez no Estoril. E agora, como aconteceu nesse ano, irá estrear-se num autódromo feito de raiz: em Portimão, uma pista construída em 2008 e recebeu os testes da Formula 1 no inicio de 2009. Mas na conferência de imprensa de apresentação da corrida, que aconteceu no passado dia 24 nas instalações do Autódromo Internacional do Algarve, o seu diretor, Paulo Pinheiro, disse que a ideia não é o de ser uma corrida de substituição, mas sim o principio de uma estadia permanente no calendário da Formula 1, desde que haja condições financeiras para o sustentar. Leia-se: apoios governamentais, porque ter a competição implica um esforço anual de 20 milhões de euros, pelo menos. Mas apesar de um investimento algo alto, o retorno é maior, pois calcula-se que este ano, pode ser entre 30 a 150 milhões de euros, em receitas indiretas, pois a prova terá público limitado. Numa pista que pode levar até 80 mil espectadores, prevê-se cerca de 60 por cento, ou 44 mil pessoas, no fim de semana de 23 a 25 de outubro. Os administradores do autódromo e as autoridades portuguesas conseguiram, finalmente, levar a Fórmula 1 para o Algarve. Mas para contar a história deste regresso, a melhor maneira é mostrar tudo. Contar a história do GP de Portugal, como surgiu, os hiatos, as corridas memoráveis, entre outras estórias do qual se calhar a maior parte não sabe. Então, comecemos. GESTOS CAVALHEIRESCOS A primeira prova de automóveis em Portugal data de 1902, quando se montou uma corrida entre Figueira da Foz e Lisboa, evento que esteve no embrião da criação do Automóvel Clube de Portugal, em 1905. Corridas em circuito surgiram em lugares como Porto, Estoril e Vila Real, este último em 1931 e a acontecer até aos dias de hoje, com interrupções. Mas em 1951, organizou-se uma prova de SportsCars, no circuito da Boavista, ganha pelo local Casimiro de Oliveira, cujo irmão, Manoel, foi um dos maiores realizadores portugueses, e tendo também feito uma carreira no automobilismo, antes da II Guerra Mundial. Na estreia do GP de Portugal no mundial de F1, Mike Hawthort e Stirling Moss travaram uma grande duelo pela vitória. As provas aconteceram até 1957, intercalados com o circuito de Monsanto, nos arredores de Lisboa, com vencedores como os argentinos Froilan Gonzalez e Juan Manuel Fangio, o italiano Eugenio Castelloti e o francês Jean Behra. Em 1958, a prova foi incluída no Mundial de Formula 1, e mais de 80 mil espectadores foram ver a luta entre Sitrling Moss, no seu Vanwall, e Mike Hawthorn, no seu Ferrari. Moss acabou por ser o vencedor, mas ele impediu que os comissários empurassem o Ferrari do seu rival, evitando a sua desclassificação. O gesto foi cavalheiresco, mas isso impediu-o de ser campeão do mundo, porque os seis pontos que o piloto teve foram suficientes para se sagrar o primeiro britânico campeão do mundo... Em 1959, a Formula 1 rumou 300 quilómetros mais a sul, para correr em Monsanto, um parque nos arredores de Lisboa. O circuito incluia parcialmente a auto-estrada entre Lisboa e Cascais, algo do qual apenas AVUS, em Berlim, tinha parecido... a prova foi um dominio dos Cooper, com Moss de novo a vencer, fazendo dobradinha com o americano Masten Gregory, e onde Jack Brabham apanhou um susto quando ia atropelando uma criança que atravessava a estrada. Ali foi também a estreia de um piloto local: Mário de Araújo Cabral, o popular "Nicha", a bordo de um Cooper da Scuderia Centrio-Sud. Em 1960, a Formula 1 volta ao Porto, num circuito na maioria corrida sobre empedrados e atravessada por... carris de elétrico. John Surtees fez a pole-position, mas a prova foi dominada pelo Cooper de Jack Brabham, que venceu sem concorrência, enquanto Jim Clark, no seu Lotus, era terceiro, conseguindo ali o seu primeiro pódio da sua carreira. EVENTO DE SUBSTITUIÇÃO Depois disso, a organização abdicou de montar circuitos no meio das principais cidades, e o GP de Portugal só voltou à ação em 1964, numa corrida de sprint à volta de Cascais, nos arredores de Lisboa. Participavam carros de Formula 3, e foi assim até 1966, quando o último vencedor foi o suíço Jorg Dubner. Nesta altura, quer em Portugal, quer no seu imperio ultraamrino, o interesse pelo automobilismo acendeu bastante, com provas em Angola e Moçambique - este último recebeu corridas da Formula 1 sul-africana - e em 1971, desenharam-se os primeiros circuitos permanentes. O Autódromo do Estoril foi uma ideia de Fernanda Pires da Silva, que queria um polo turístico na zona, em paralelo com outro em Luanda, em Angola. Ambos os circuitos foram desenhados por Ayrton Cornelsen, e foram inaugurados com três semanas de diferença, e com um objetivo em mente: e regresso da Formula 1. Contudo, os eventos de 1974, com o golpe de estado que terminou com 48 anos de ditadura em Portugal e a agitação social subsequente, com a independência das colónias africanas, no ano seguinte, adiaram o sonho por mais alguns anos. Foi pela ideia de Fernanda Pires da Silva, com projeto do brasileiro Ayrton Cornelsen que nasceu o Autódromo do Estoril em 1972. Por esta altura, já se tinha começado a organizar o Rali de Portugal, uma das provas de maior sucesso no automobilismo, e chamariz popular para ver os carros na estrada. Um dos "originais" - ou seja, entrou no calendário de 1973, o primeiro do Mundial de ralis - tinha como organizador Alfredo César Torres, cujas capacidades eram elogiadas. Uma das histórias que deram fama a ele como "o homem que resolvia as coisas" foi quando em 1974 conseguiu um fornecimento de gasolina vindo da Venezuela, que garantiu a realização do Rali, em plena crise petrolífera e tinha visto cancelado o Rali de Monte Carlo. Ao longo do resto da década de 70, o rali de Portugal era a prova-charneira do autonobilismo nacional e muitas das classificativas-espectáculo aconteciam no Autódromo do Estoril, perante plateias cheias. Mas durante esse tempo, a grande frustração tinha sido a Formula 1, sempre fugidia. Provas de Formula 2 tinham sido organizadas, em 1975 e 77, mas a falta de organização tinha impedido de ir mais longe. Até que César Torres entrou em cena e reavivou o Grande Prémio. Tudo por causa de uma vaga por preencher. Foi apenas em 1984 que a Fórmula 1 retornou para Portugal, e logo com a decisão do campeonato entre Lauda e Prost. Em 1984, Bernie Ecclestone tinha chegado a acordo para ter uma corrida em Espanha, mais concretamente em Fuengirola, uma estância balnear no sul. Contudo, esse circuito citadino era mal desenhado e pobremente organizado, e cedo foi descartado. Rapidamente, na primavera desse ano, as coisas avançaram rapidamente e no fim de semana do GP do Mónaco, o anuncio foi feito: a 21 de outubro, a Formula 1 iria encerrar em terras portuguesas. Foi o delírio, ainda por cima, poderia ser o cenário de uma decisão do título. Foi o que aconteceu: perante 85 mil pessoas, Niki Lauda e Alain Prost disputavam o título mundial. O francês venceu, mas Lauda, que partia de um modesto 11º posto, chegou ao segundo lugar, necessário para ser campeão, depois dos freios do Lotus de Nigel Mansell terem cedido. Ayrton Senna, na sua última corrida pela Toleman, conseguia ali o seu terceiro pódio da sua carreira. OS QUATRO CAVALEIROS No ano seguinte, a corrida foi colocada em abril, como prova de abertura na Europa. Debaixo de um dilúvio, Ayrton Senna dominou a corrida do principio até ao fim, conseguindo a sua primeira vitória e a primeira da Lotus após a morte de Colin Chapman. Em 1986, a corrida foi mudada para setembro, quase no final do calendário, e normalmente a última prova europeia. Nesse ano, depois da qualificação, com o melhor tempo obtido por Ayrton Senna, os quatro candidatos ao título alinharam-se nos muros das boxes, perante a tribuna principal, num arranjo feito por Bernie Ecclestone. Senna, Piquet, Mansell e Prost ali estavam perante o mundo, numa foto imortalizada. E desses três, apenas Piquet não venceria naquele circuito. Mansell venceria nesse ano, bem como em 1990 e 1992, enquanto pelo meio, faria asneiras homéricas nas boxes em 1989 e 1991, acabando desclassificado em ambas. Por seu lado, Alain Prost iria vencer em 1987 e bateria o recorde de vitórias que até então pertenceria a Jackie Stewart. Venceria de novo em 1988 e em 1993, seria segundo classificado, atrás de Michel Schumacher. Mas foi ali que conseguiu os pontos suficientes para ser sagrado campeão do mundo pela quarta vez, ao serviço da Williams. E também foi ali, no Estoril, que anunciou o seu abandono definitivo da Formula 1. Foi nessa edição de 1993 que na McLaren se viu a estreia de Mika Hakkinen nessa equipa, depois de terem tido Michael Andretti durante boa parte do ano, com resultados decepcionantes. O finlandês colocou Ayrton Senna em sentido, sendo mais rápido do que ele e foi um dos protagonistas da prova até se despistar a meio da prova. Michael Schumacher foi o triunfador, na sua segunda vitória da sua carreira. Em 1995, David Coulthard se tornava no segundo piloto a vencer pela primeira vez na pista portuguesa, a bordo do seu Williams, e no ano seguinte, Jacques Villeneuve espantava o mundo ao ultrapassar Michael Schumacher por fora na Parabólica antes da reta da meta, conseguindo a liderança e não iria mais largá-la até à meta. Essa foi a última corrida em solo português. DESFASAMENTOS E PROJETOS MEGALÓMANOS Em 1996, a pista portuguesa já tinha estatuto. Era um dos locais dos testes de inverno da Formula 1, onde muitos dos carros estreavam ali, perante a imprensa mundial. Mas ele já acusava os anos: o paddock era pequeno, e não se podia expandir muito, pois fazia paredes meias com um parque natural e um hotel de cinco estrelas, o Penha Longa. Bernie Ecclestone exigia modificações, e o governo fazia o que podia, e chegou a estar no calendário de 1997, mas depois, acabou por cair, sendo substituido por Jerez, que foi palco da última corrida do ano, aquela onde Michael Schumacher tentou fazer uma ultrapassagem musculada a Jacques Villeneuve, sem sucesso... Depois da etapa de 1996, questões políticas e comerciais acabaram por fazer Portugal perder sua etapa no mundial de F1. Nesse ano, César Torres, a pessoa por trás do crescimento do Rali de Portugal e de ter trazido o Grande Prémio, e por isso chegou ao posto de vice-presidente da FIA, morreria, vitima de cancro, aos 64 anos. Sem essa força por trás, Portugal perdeu muito do poder que tinha nos bastidores e o automobilismo perdeu imensa força, ao ponto de, em 2001, o rali de Portugal ter saído de cena no calendário. Os primeiros anos do século XXI foram de deserto automobilistico, até que em 2006 surgiu o projeto do autódromo do Algarve. Construido em menos de um ano, foi a ideia de Paulo Pinheiro de ter um autódromo cinco estrelas, com Grau 1 da FIA, sem ser desenhado por Hermann Tilke. O financiamento foi conseguido através de bancos irlandeses, e o projeto contemplava um hotel de cinco estrelas e um complexo habitacional de luxo nos terrenos à volta. Tudo ficou pronto em outubro de 2008, precisamente na altura em que rebentava a crise mundial e um dos mais atingidos tinham sido os bancos irlandeses, nacionalizados pelo governo e do qual assumiriam as suas dívidas. Parecia um projeto megalómano e muitos colocaram-o em dúvida, mas apenas teve o azar de abrir na altura errada. Com o passar dos anos, recebeu diversas provas, desde uma prova da GP2 até corridas da European Le Mans Series - é a prova de encerramento da temporada desde há alguns anos - até aparições em dois dos principais programas de automóveis a nível mundial: o Top Gear e o The Grand Tour. O Autódromo Internacional do Algarve já foi palco de provas da GP2 e outras categorias mundiais sob chancela da FIA. O sonho possível era o Moto GP, especialmente depois da chegada do primeiro piloto português à competição, Miguel Oliveira, mas com a pandemia a acontecer, a Formula 1 começou por ser uma possibilidade "louca" no inicio da primavera, quando o calendário original foi descartado, até começar a ser uma possibilidade, fortalencendo com o passar das semanas. E agora, estão de volta, esperando que não seja uma corrida de substituição. Mas para isso acontecer, teria de passar por muito, desde a boa vontade do governo em financiar, até conquistar os corações de pilotos e equipas, vendendo a ideia de que é um excelente circuito. Será outra montanha para esacalar, mas já esteve mais longe. No dia 25 de outubro, as luzes apagarão e o solo português verá o pelotão da Formula 1 a correr ao vivo. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira Não deixe de visitar a pagina do nosso colunista no Facebook. |