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Entrevista: 'Seo' Tchê PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Sunday, 20 June 2010 05:28

 

 

Lucio Pascoal Gascon. O nome deste senhor que entrevistamos não é muito conhecido uma vez que seu apelido remete-nos diretamente ao enorme sucesso de dele e de seus pupilos ao longo de décadas dedicado ao kartismo brasileiro desde o seu início no Brasil, há 50 anos. Agora, se falarmos em ‘Seo’ Tchê... ah, esse todo mundo, dentro e fora do kartismo conhece. Assim, durante a festa de lançamento da ABPC, ‘Seo’ Tchê, que foi um dos ilustres convidados do evento, concedeu esta sensacional entrevista.  

 

NdG: Há quanto tempo o Sr. está no Brasil e o que o trouxe a te aqui? 

 

‘Seo’ Tchê: Eu cheguei no Brasil no dia 25 de outubro de 1960, como tantos outros imigrantes, buscando uma nova vida, novas oportunidades e foi na mecânica, em especial com os karts que consegui me estabelecer. 

 

NdG: Em seu país o Sr. já tinha alguma ligação com automobilismo em algum nível? 

 

‘Seo’ Tchê: Na Espanha eu era ferramenteiro e fazia desenho mecânico e eletrônico em uma escola semelhante a que existe aqui no SENAI. Nos anos 60 haviam poucas escolas de formação no Brasil e vir para cá com estes cursos era quase uma garantia de emprego. Na escola a gente aprendia a limar, soldar, cortar, tornear e isso foi muito importante para mexer com motores. A gente era quase um engenheiro. Além do mais, eu escolhi a profissão certa, pois sou uma pessoa realizada, faço meu trabalho com amor. É um trabalho que não é fácil, mas quando a gente faz com amor, tudo é bom 

 

NdG: O seu envolvimento com automobilismo sempre com Kart ou o Sr. também trabalhou com outras categorias? O Kart foi algo de vocação ou mais oportunidade? 

 

 

"Nos anos 60 o Brasil era uma terra de oportunidade e eu, como muitos, vieram para cá para tentar vencer na vida." 

 

‘Seo’ Tchê: Desde o início eu comecei a trabalhar com karts. Os karts tinham acabado de chegar ao Brasil. No início eu também trabalhei com motos e carros. Trabalhei na preparação de um Volkswagen para as Mil Milhas brasileiras em 1961. Fizemos este carros ‘só de brincadeira’ e ganhamos na nossa categoria. No início eu e o Gurgel, meu parceiro fazíamos tudo que era motor. Precisávamos de dinheiro para viver e até motor de popa para barcos nós fizemos. 

 

NdG: Ao longo dos anos em que o Sr. esteve envolvido, em que o Sr. viu o Kart evoluir? Como o Sr. analisa o processo do desenvolvimento do kartismo no Brasil? 

 

‘Seo’ Tchê: No início, nos anos 60, fomos nós, os que começaram com o kart que fizemos todo o trabalho e, junto com os pilotos, consolidaram a categoria. Infelizmente os que há algum tempo controlam o kartismo, seja como fabricantes, seja como donos de pistas, seja como dirigentes, desvirtuaram o kartismo que era para ser o início de tudo para ser. As vezes a gente tinha um piloto que via que era bom, que tinha futuro e não tinha dinheiro, a gente fazia o trabalho de graça. Hoje isso é impossível de ser feito devido a tantos interesses que estão envolvidos. Hoje o monopólio é dos grandes fabricantes de karts e motores. É tudo material importado e não há muito mais como se trabalhar o equipamento. Está tudo muito limitado. Hoje, no automobilismo em geral, tudo está nas mãos de quem é grande. 

 

NdG: Em uma outra entrevista que fizemos, o entrevistado, Maneco Combacau,  se referiu ao acerto do kart e a preparação do motor como coisas distintas. O Sr. trabalhava as duas áreas ou só motores? 

 

‘Seo’ Tchê: Eu sempre trabalhei com as duas coisas: chassi e motor. Na verdade, meu início no kart nem foi com motores, mas sim na fabricação de chassis. Só depois foi que comecei a mexer com os motores. Meu ex-patrão e professor me ensinou que era mais fácil fazer um motor do que fazer um chassi e realmente é mais fácil fazer o motor.  

 

NdG: Sempre se ouviu falar em ajuste das agulhas e também no número de dentes de uma coroa? O Sr. pode falar um pouco sobre isso? 

 

 

"O bom preparador precisa ter 'ouvido' para perceber o funcionamento do motor e fazer os ajustes necessários para melhorá-lo." 

 

 

‘Seo’ Tchê: Isso é um segredo que era desenvolvido pelos preparadores, pelos mecânicos. Dependendo da pista e do método de trabalho do preparador é que ele decide ou ao menos indica qual a melhor relação e prepara o kart desta maneira. Por exemplo, se você está em uma pista grande e que o motor vira a 15 mil giros, você vai calcular assim, ‘no ouvido’, como o motor está se comportando para calcular a coroa. Ter a sensibilidade de fazer um cálculo certo faz a diferença entre virar mais ou menos rápido. Isso era uma coisa que precisava de muita sensibilidade e que pouca gente sabia como fazer. Tinha coisa que a gente fazia que ninguém fazia, tipo retificar pneu. A gente recuperava pneu e dava mais vida útil, isso permitia o piloto treinar mais. Essas coisas fazem diferença. 

 

NdG: No início dos anos 60, os irmãos Fittipaldi começaram a construir karts. Naquele tempo os pilotos se envolviam mais com o trabalho em seus carros. Atualmente, com estes esquemas mais – digamos – profissionais, os jovens pilotos ou candidatos a pilotos ainda continuam pondo a mão na graxa?  

 

‘Seo’ Tchê: Naquela época a gente começou a fazer os karts aqui copiando as fotos das revistas, os modelos que o Claudio Daniel Rodrigues trouxe para o Brasil e os pilotos que foram correr no kart, já eram, muitos deles, pilotos de corrida das equipes que participavam das corridas de carros no Brasil, que entendiam de carro, de motor e com isso, trabalhavam nos karts. Hoje a gente estimula o piloto a vir para a oficina, a mexer no kart, a mexer no motor. A gente explica para ele que ele tem que conhecer o kart, que conhecendo o kart ele vai conseguir tirar mais dele... mas não são todos que fazem isso. 

 

NdG:Quando foi que isso começou a mudar? O Sr. vê quais as razões para esta mudança? 

 

‘Seo’ Tchê: O problema é que muito menino vem com o pai e o pai quer ver o filho piloto na fórmula 1, as vezes por que ele queria ser piloto de fórmula 1 e agora tenta se realizar no filho. Só que ele atrapalha, dando palpite no que entende e achando que o filho tem que estudar inglês, fazer preparação física, fazer fotografia... primeiro o menino tem que correr e para correr bem tem que conhecer o kart, o motor, aprender com o mecânico como guiar, como acertar o kart. No início, o piloto vinha sozinho, depois, quando começaram a vir cada vez mais cedo e com os pais é que isso foi mudando. 

 

NdG: Atualmente se vê meninos e meninas de 7 anos disputando corridas. Não é muito cedo? Ou, para o Sr. o kartista precisa começar cedo para poder vir a ser um grande piloto? Qual a idade ideal para isso, na sua opinião? 

 

 

"O menino de 7 ou 8 anos na pista é um erro. O kartista tem que entender de mecânica e com esta idade ele não entende."

 

‘Seo’ Tchê: Isso que estão fazendo hoje está errado. O menino começar a correr de kart com seis, sete, oito anos tem que ser só como brincadeira e ainda assim é muito cedo. Colocar um menino de menos de 10 anos num kart pode ser até perigoso. Para competir então, nem pensar. isso que estão fazendo hoje é errado. . O kart tem que começar como uma diversão, como algo que ele se apaixone, daí, depois, pelos 13, 14 anos, quando ele já tiver mais capacidade de entender o que é o motor, como se trabalhar a mecânica, aí sim, começar a competir. Hoje o menino passa 10 anos competindo no kart, quando chega na hora de ir para o carro, ele já está cansado e o pai já gastou muito com ele. 

 

NdG: Ao seu ver, até onde a presença ou as atitudes do pai ou a família ajudam e quando é que ela começa a atrapalhar o desenvolvimento do kartista? 

 

‘Seo’ Tchê: Esse é um problema complicado. Muitas vezes um pai chega com um filho que está começando no kart, o menino dá cinco, seis voltas e quando para o pai pergunta como é que está o motor... o menino não vai saber responder e pergunta: pai, quanto que eu virei? Daí o pai fala o tempo que, normalmente, não está bom... e assim um começa a atrapalhar o outro. O pai precisa entender que é o mecânico que vai ser o professor do filho dele, não ele. Ele, o pai, pode ajudar muito sendo um bom exemplo, ajudando nas lições da escola, mostrando que o filho tem que ter valores como respeito, responsabilidade, incentivando, apoiando, mas tem que deixar o trabalho na pista, no kartódromo com a gente. Lá, ele tem que ser torcedor, incentivador... ele ficar cobrando é algo que acaba sendo negativo para o menino. O Ayrton [Senna] teve muita sorte nisso porque ele vinha treinar sem o pai; Eu vi amigos meus, preparadores, mandar o pai embora (risos) para poder falar com os meninos sobre os aspectos técnicos.  

 

NdG: O Sr. já viu, certamente, kartistas com muito talento e que se tornaram grandes pilotos. O Sr. viu ou lembra de algum caso que tenha sido o oposto: Quando garoto não era tão bom kartista mas depois veio a ser um grande piloto? 

 

 

"O pai tem que ser um torcedor, um incentivador e um exemplo. A preparação do piloto tem que ficar conosco não com ele." 

 

‘Seo’ Tchê: O kartismo te dá uma grande vantagem então acaba sendo mesmo a categoria escola, onde se começa a aprender a correr, a se ter as noções de como virar o volante, se como fazer uma curva, de como atacar uma zebra. Claro que podem surgir bons pilotos sem que tenham passado pelo kart ou mesmo não sendo tão bom kartista, mas isso é mais difícil. As vezes não é o piloto que não é um bom kartista, mas o bolso do pai que não permite que ele treine muito, que tenha um equipamento bom... nos dias de hoje, não tem como se desenvolver sem ter dinheiro. Nos anos 60, 70, até se conseguia fazer alguma coisa e quando o preparador via que o garoto tinha potencial, ajudava ele. 

 

NdG: O senhor teve a oportunidade de trabalhar com alguns dos melhores kartistas do país. O que eles tinham a mais que os outros? 

 

‘Seo’ Tchê: Eram mais curiosos! Eles queriam saber o porque de cada coisa que eu falava. Então eu tinha que explicar com mais detalhes cada coisa, porque fazia aquilo, que resultado aquilo poderia dar... as vezes um piloto que não perguntava tanto e andava atrás de outro que andava muito perguntava se eu estava fazendo algo diferente no motor dele que no de outro. Aí eu trocava o motor para ver se ele sentia a diferença. O que perguntava pouco não costumava sentir, o que perguntava muito, sentia logo a diferença e as vezes eu fazia outra coisa: eu trocava só a etiqueta do motor, não trocava nada. Se o piloto dizia que o motor estava melhor, que estava diferente, é porque ele não sentia nada. Eu fazia muito isso com o Ayrton porque pensavam que o motor dele era melhor, e não era. O Ayrton aprendeu a sentir o motor e dizer como ele estava. As vezes o motor do outro era melhor que o dele e ele dizia: ‘quer trocar’? e trocava o motor com o outro menino que achava que o motor dele era pior que o do Ayrton (risos).  

 

NdG: Sabemos que quanto melhor o equipamento, melhores chances se tem de obter bons resultados. Mesmo assim, no meio do “bolo”, é possível se identificar um bom kartista que não consegue andar na frente apenas por ter um equipamento inferior ao de seus concorrentes? 

 

‘Seo’ Tchê: É possível, mas é difícil. A gente pode pegar um piloto ruim, trabalhar, moldar ele e deixá-lo um piloto bom. O piloto quando está no kart, que põe o capacete, que fica sozinho com ele mesmo ele vai fazer aquilo que sabe. A gente que está há anos acompanhando os pilotos podemos ver o potencial deles, o que ele tem para melhorar, o que tem que aprender... o piloto tem que estudar mecânica, que ir na oficina, que conhecer o equipamento, perguntar as coisas para o preparador 

 

NdG: Esta corrida por equipamentos melhores e mais caros não encareceu demais o kart? 

 

 

"A indústria do kart encareceu o esporte, mas a maior culpa é dos pais, que compram tudo e muito. Motor se faz na oficina." 

 

‘Seo’ Tchê: Uma parte da culpa é da indústria do kart, que hoje é um negócio, mas a maior parte da culpa é dos pais, que inflacionaram o mercado, que para tentar fazer com que o filho ande na frente, compra 10 motores, 5 chassis, uma montanha de pneus... isso é que faz o kart ficar caro. Aí entra novamente o conhecimento do preparador, para fazer o equipamento render mais, durar mais. Um exemplo: o pai vai na loja compra o melhor carburador e instala no kart do filho. O filho anda, anda, anda... depois de um tempo, o carburador não funciona mais direito e aí o pai vai na loja reclamar. O carburador saiu da loja novo, funcionando. Aí eu pergunto: depois do treino tiraram o carburador, lavaram as peças com gasolina, limparam os reparos, substituíram algum? É isso que faz o kart ficar caro também. O esporte motorizado é um esporte caro, mas pode ser feito de forma mais barata se for feito corretamente.

 

NdG: Este encarecimento do kartismo vem diminuindo os grids na após ano, principalmente nos últimos 10 anos. Cada vez mais, menos garotos tem acesso às competições oficiais. Isso pode acabar “matando” o kartismo no Brasil? 

 

‘Seo’ Tchê: Totalmente. E o pior é que o garoto com 14/15 anos não que mais continuar a Carreira. Por que começam muito cedo e aí o dinheiro do pai acaba e ele ainda não tem idade para ir buscar como se manter no esporte, como uma equipe sustentá-lo. 

 

NdG: O senhor ganhou um grande destaque na mídia por ter sido o mentor e preparador do Ayrton Senna, mas tendo o senhor começado no kart na década de 60, muitos outros pilotos passaram por suas mãos e, depois do Ayrton, também. Quem foi que trabalhou com o senhor que o senhor lembra bem? 

 

‘Seo’ Tchê: Foram muitos e muitos bons pilotos. Os irmãos Fittipaldi, os Irmãos Giaffone, o Alex Dias Ribeiro, o Roberto Pupo Moreno, o Chico Serra, o Mauricio Gugelmin... foram muitos, não só em São Paulo, mas também no interior e em outros estados. 

 

NdG: O que o Sr. diria hoje para um garoto que estivesse querendo começar no Kart? 

 

 

"O Ayrton  era diferente porque era mais curioso que os outros. o kartista tem que entender como seu kart e seu motor funcionam."

 

‘Seo’ Tchê: Que ele tem que estudar muito, que conhecer mecânica, que conhecer o kart, que o piloto não é apenas aquele cara de macacão na pista, é também o que monta e desmonta o motor do kart, que conhece o funcionamento do chassis e que para isso ele vai ter que passar muitas horas na oficina e que tem que treinar muito. Por isso que digo que o menino tem que brincar primeiro, que para competir, tem que ter seus 12, 13, 14 anos, para já saber o que quer e fazer carreira. 

 

NdG: Depois de todos estes anos, o Sr. se sente realizado? Feliz com o nome que construiu e que é tão respeitado no meio do kartismo e do automobilismo?

 

‘Seo’ Tchê: Completamente! Eu conquistei diversos títulos como preparador com diversos pilotos. Tenho 3 filhos que foram campeões paulistas e brasileiros correndo de kart 

 

NdG: Ficou alguma mágoa, ou algo que o Sr. acha que poderia ter realizado e não conseguiu? 

 

‘Seo’ Tchê: Mágoa? Mágoa não. Realização, sim. Nestes 50 anos nós conseguimos fazer um bom trabalho, mesmo com uma estrutura pequena, mesmo com a desconfiança e até desprezo de alguns, mesmo tendo chegado aqui, em outro país, sozinho, para tentar se estabelecer... a gente conseguiu. Vencemos, somos respeitados e reconhecidos. 

 

NdG: É com muito prazer e orgulho que presenteamos o senhor com uma camisa dos Nobres do Grid. É muito pouco, diante de tudo o que o senhor fez pelo nosso automobilismo, mas é de coração e o senhor é, com certeza, um Nobre do Grid. 

 

‘Seo’ Tchê: Muito bonita a camisa, obrigado.

 

 

 

 

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Last Updated ( Sunday, 10 October 2010 10:42 )