Uma recente mensagem que recebi me levou de volta no tempo. Revisitei mentalmente o Japão, onde estive pela primeira vez há mais de 20 anos para treinamento pela Bridgestone. Parte da viagem consistia em visitar instalações e conhecer produtos; e olha que a Companhia produzia (e produz) uma diversidade que vai de bolas e tacos de golfe, passa por bicicletas e segue além; bem mais que pneus. Entre as pesquisas e produtos tive a oportunidade naquela época de ver in loco o sistema de estabilização de edifícios. Eles sofrem muito com terremotos, além das alturas serem incríveis. Mas, o que tem isso a ver com dinâmica veicular? Bem, tem a ver com a mensagem que mencionei e que trouxe de volta uma controvérsia de conceito aplicado, já não tão recente, no automobilismo. Uma tecnologia, algumas aplicações, uma só finalidade A lei de Lavoisier (1743-1794) é resumida numa só frase: “Na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”. No automobilismo, principalmente na Fórmula 1, há um trocadilho: “Nada se cria e nada se perde, tudo se copia”. Quando não se baseia no de outra equipe, vem de outras categorias ou mesmo de outras áreas de tecnologia e conhecimento humano. Assim foi com o amortecedor de massa da equipe Renault entre os anos de 2004 e 2006. Uma simples e grande sacada. (Foto: Clive Mason/Getty Images) É mais conhecido da Engenharia Civil, baseado no princípio de amortização das harmônicas em sistemas vibracionais. Traduzindo, serve para evitar que os edifícios, principalmente os mais altos, entrem em ressonância (a amplitude do movimento repetitivo vai aumentando) até colapsar por ação de ventos ou trepidações advindas de terremotos. Ele fica no topo dos arranha-céus, e é grande. Atua na frequência natural da estrutura do edifício e é projetado para neutralizar um desfavorável balanço pendular (desconfortável nos andares mais altos) e evitar danos estruturais. Se o prédio tende a ir para um lado, ele de imediato vai para o oposto, evitando o movimento amplificado. Em suma, ele absorve energia cinética inercial e mantém o prédio quietinho, ou ao menos o mais possível. Títulos não lhe faltam. Absorvedor de harmônicos, amortecedor de massa ajustado ou amortecedor de massa ativo (AMD – Active Mass Damper) ou ainda amortecedor de massa sintonizado (TMD – Tuned Mass Damper). Não importa; o que realmente faz a diferença é o princípio de seu funcionamento...e que foi utilizado nos carros da F-1. Como o nome diz, ele é ajustado para determinada frequência, a natural da estrutura. E isso é obtido por modelo matemático e em escala (foto abaixo). Note que a ação do pêndulo (à direita) filtra as oscilações em relação ao modelo sem ela (à esquerda). A determinação da massa do pêndulo é a essência para definir frequência e período apropriados. Só serve para aquele específico prédio. Mas o conceito não serve apenas para edifícios. Também se aplica onde a contraposição de massas é interessante para amenizar ou eliminar vibrações (quase sempre) indesejadas; compensadores de massa em motores e transmissões de força, por exemplo. A simulação de altos edifícios é feita por modelos em escala (Fotomontagem: engenhariacivil.com) Como foi parar em carro de F-1? A primeira atenção a se dar é a de que, embora pareça e o nome seja sugestivo, ele não é parte da suspensão dos Renault R25 e R26 que deram o título de pilotos a Fernando Alonso em 2005 e 2006. A ideia surgiu em 2004, e aplicada nos dois anos seguintes, pelas mãos (e cabeça) do engenheiro Robert Marshall. Basicamente, a primeira versão não passava de uma massa suspensa verticalmente entre duas molas, e alojada longe da vista de todos, dentro do nariz do carro (vide arte abaixo). Posição estratégica e funcionamento pendular (Arte: Giorgio Piola / Grand Prix History) Em mais detalhes, era um cilindro rigidamente fixado ao chassi (monobloco); dentro dele, um disco instalado entre molas (uma de cada lado do disco) e imerso em fluido de amortecedor. A massa inicial de 9 kg do disco foi determinada como nos modelos matemáticos de edifícios, ou seja, para atenuar a frequência natural da estrutura, no caso, o chassi com carenagem. O “ajuste fino” para cada circuito era dado pela maior ou menor facilidade de o fluido passar pelos orifícios (na verdade, válvulas) do disco, este podia ser trocado por outro; e também pela facilidade de o fluido passar entre as paredes do disco e cilindro (vide arte abaixo). Disco podia ser trocado e passagem do óleo ajustada; refinamento para cada circuito (Arte: gptotal.com) Amortecedor de massa e pneus, bons companheiros De várias décadas é conhecida a importância de iniciar o projeto de um carro de F-1 a partir dos pneus; nas mais recentes, onde a aderência aerodinâmica ganhou mais valor do que a aderência mecânica, as pressões de enchimento baixaram e eles se tornaram verdadeiras molas para filtragem fina de impactos. Observe em qualquer vídeo que mostre o carro em câmera lenta, como os pneus se mexem nos aros. Em contrapartida, amortecedores e molas da suspensão tornaram-se cada vez mais rígidos para evitar os movimentos do chassi em torno dos eixos cartesianos e, com isto, evitar alterações de geometria. As quatro rodas (aros e pneus) como massa não suspensa têm movimento vertical, e suas oscilações independentes tendem a desnivelar toda massa suspensa, que é o conjunto monobloco-carenagem. Este tornou-se verdadeira estrutura aerodinâmica e se comporta como tal; ou seja, qualquer pequena alteração na passagem do fluxo de ar a desequilibra. A força aerodinâmica para baixo (downforce), passa diretamente para as quatro áreas de contato dos pneus; se houver variação de forças nelas, há desequilíbrio e decréscimo na estabilidade. O conjunto monobloco-carenagem precisa ficar sempre nivelado, independente do quanto trabalhem os pneus. Então, é necessário que os impactos que levantam a frente do carro em zebras, bem como as tendências de inclinação lateral do chassi em curvas, afocinhamento (ou mergulho) nas frenagens e agachamento nas retomadas de aceleração, sejam compensados (foto de abertura). É aqui, em contraposição de sentido dos esforços, que ocorrem os movimentos daquele disco de massa minimizando o desnivelamento e as alterações, preservando assim a aderência aerodinâmica. Reduzindo os movimentos e esforços, principalmente em curvas e impactos nas zebras, a frente era puxada para um baixo ou para cima conforme a necessidade. Isto mantinha o equilíbrio na distribuição da downforce e consequentemente nas áreas de contato dos pneus, que sofriam menor desgaste e tinham mais aderência. Genial! Nem tudo são flores A primeira utilização em provas da categoria foi no Grande Prêmio da Itália de 2005, aparentemente sem ser muito notado. O sistema, assim que descoberto, foi logo alvo de testes e uso por outras equipes ainda naquele ano. No final da temporada, como não raro acontece, alguns engenheiros trocaram de equipe; entre eles Rob Marshall, que foi para a Red Bull e lá aplicou o sistema no RB2. Equipes secundárias como a Toro Rosso e Midland também utilizaram; entre as grandes, a Ferrari logo desenvolveu o seu próprio sistema, enquanto McLaren e Honda faziam testes. E assim seguiu-se até o Grande Prêmio da França do ano seguinte. A FIA (Federação Internacional do Automóvel) pareceu não se incomodar ou questionar até então. Mas, como de costume, quando alguém não consegue fazer funcionar (leia-se obter melhores resultados que o rival), alega irregularidade dos outros. Foi a McLaren que “colocou o dedo na ferida”, pois testava o sistema sem sucesso. Antes do Grande Prêmio da Alemanha de 2006, a FIA notificou todas as equipes para não utilizarem o sistema e seus já existentes derivados. Sim, já havia variações do sistema original. A própria Renault já utilizava o princípio também na traseira (vide arte abaixo) assim como a Ferrari também fazia. O mesmo princípio foi aplicado na traseira para aumentar ainda mais o equilíbrio (Arte: Giorgio Piola / Motorsport) Por sua vez a Honda experimentava em testes uma versão também na região do tanque de combustível. Havia ainda quem tentasse massa da ordem de 30 kg e com movimentação não só na vertical, mas também na transversal. Foi esse crescimento descontrolado de opções que, segundo a FIA, fez com que os dispositivos fossem banidos. Mas estranha foi a alegação oficial. Dizia que, embora na visão anterior não infringissem regulamentos técnicos, a escalada de desenvolvimentos deixava claro que o objetivo principal passou a ser a melhora no desempenho aerodinâmico e não a assistência mecânica do início do projeto. E como o dispositivo era móvel, isto não era permitido pelo regulamento vigente na época que exigia peças fixas e imóveis em relação à massa suspensa. Além disto, alegou que um aumento contínuo das massas utilizadas implicava em risco à segurança. Valia a pena? Sim. Nessa época, os limites mínimos de peso eram maiores; facilmente os carros ficavam abaixo e precisavam de lastros. Mas lastros são bons quando fixados o mais baixo possível, certo? Certo, só que as massas desses amortecedores, apesar de serem fixadas em posições mais altas, além de servirem como lastro, tinham a vantagem de se moverem conforme explicado. Com isto era possível frenagem mais forte e mais dentro da curva, menos inclinação lateral e retomada de aceleração antecipada e mais forte na saída de curva. Baseada nisto, e como percursora do sistema, a Renault havia projetado seu carro em volta disso e de sua ótima integração com os pneus da Michelin. Por isto, foi mais prejudicada que as outras equipes quando todos tiveram que abolir os dispositivos. A Ferrari, por exemplo, havia apenas adaptado ao carro que já estava pronto; só teve que remover. Como sempre, outras soluções vieram e se foram nesse engenhoso mundo do automobilismo. E dizer que na década anterior a essa dos fatos, a F-1 tinha um engenhoso, mas complexo e caro sistema hidropneumático controlado eletronicamente, chamado de suspensão ativa, para fazer basicamente o mesmo. Mas o ainda mais interessante é saber que houve outra aplicação do princípio bem antes. O Citroën 2 CV lançado em 1948 tinha um conjunto desses em vez do amortecedor tradicional na (foto abaixo). Quem teve oportunidade de conhecer um 2 CV, viu que, com carro parado o sistema não atuava, em que se balançado verticalmente era como um carro sem amortecedor, ficava oscilando feito geleia, completamente descontrolado. Mas era só iniciar a marcha que o sistema, chamado de batteur pelos franceses, controlasse os movimentos da suspensão à perfeição. Criado como carro popular, o 2 CV já possuía o sistema na suspensão (Foto: AE Classics) Legal, não? Mas acredito que Lavoisier deve estar se revirando no túmulo. Mário Pinheiro |