Lá pelo final dos anos 1980, uma fabricante de caminhões procurou a Cofap para nacionalizar os amortecedores do seu novo chassis de ônibus prestes a entrar no mercado. Entre as tecnologias aplicadas, estava uma nova suspensão com molas pneumáticas. E lá fomos nós para o trabalho conjunto de avaliação, testes e calibração de amostras. A primeira surpresa veio com o “dinossauro” que apareceu; não por ser arcaico (longe disso para a época), mas pelo tamanho. Como reza a cartilha da engenharia, a fabricante partiu para o caso mais crítico; tinha carroceria no modelo rodoviário double deck (dois andares, em tradução livre). Era grande, e alto. Até hoje, lembro de instintivamente abaixar a cabeça a cada viaduto. Estava mais para transatlântico, de tanto espaço e conforto. Se não tivesse o teto do andar superior e olhássemos para baixo, facilmente lembraria um trampolim de saltos ornamentais. Como então acreditar que em algo daquele porte não cambaleássemos como num bote em alto-mar? (Foto: messier_safran-group.com) Mas foi esta a segunda surpresa; rodava macio feito pé descalço em tapete felpudo e oscilava muito pouco, tanto em retas, o que é comum em alguns ônibus com suspensão metálica, quanto com pouca inclinação (rolagem) em curvas. A minha primeira impressão técnica, fruto da inexperiência com aquele tipo de suspensão, era de que precisaríamos de amortecedores de altas cargas para segurar tudo aquilo. Ledo engano. O engenheiro da matriz deles, que veio acompanhar o desenvolvimento no Brasil, trouxe o gráfico da curva de amortecimento já aplicada em seu país. Valores incrivelmente baixos. Torcemos o nariz e tentamos valores mais altos por conta própria. Bobagem; a suspensão ficou muito presa e prejudicou a dinâmica e controle do veículo. Relutantes, afinal aqui é Brasil e os pisos não são nada delicados, partimos para reproduzir a curva de amortecimento original. Bingo! “Suave na nave” e controlado. Mas como? E por quê? Um início não tão promissor Max Planck (1857-1947) com sua Teoria dos Quantas e Albert Einstein (1879-1955) com sua Teoria Especial da Relatividade estavam prestes a chacoalhar as bases da Física Clássica. Ao mesmo tempo, baseando-se na Lei das Deformações Elásticas de Robert Hooke (1635-1703), havia quem trabalhasse em melhorar o conforto dos veículos automotores. Numa época de eixos rígidos e molas metálicas sem ou com pouco sistema de amortecimento, os pneumáticos já haviam sido introduzidos comercialmente há muito justamente por serem molas de ar e auxiliar nessas funções. Não tardaria para alguém utilizar esse conceito de mola de ar e substituir, ou ao menos auxiliar, as molas usuais para reduzir a aspereza de rodagem e suavizar os impactos. Mas o processo não foi fácil. Mais precisamente em 7 de maio de 1901, foi concedida ao americano William W. Humphreys (1861-1934) a patente de sua Mola Pneumática para Veículos. Eram algo como almofadas alongadas infláveis através de válvulas dispostas em duas canaletas longitudinais no chassis, e que auxiliavam as molas convencionais de lâminas. Pouco prático. Oito anos depois, a companhia britânica Cowey Motor Works apresentou um cilindro com um diafragma de borracha que precisava ser inflado por uma bomba dessas para pneu de bicicleta. Um princípio parecido aos dos amortecedores. Materiais pouco resistentes e constantes perdas de ar não deram confiabilidade nem vida ao sistema. Já pelos anos 1920, o francês George Messier (1896-1933) desenvolvia e aplicava nos veículos de sua fabricação (foto de abertura) um sistema primeiramente a ar que depois deu origem aos trens de pouso hidropneumáticos em aeronaves (foto abaixo). O sistema desenvolvido e utilizado em aeronaves foi a base para a suspensão hidropneumática (Foto: safran-group.com) Este conceito serviu como base para que outro francês, Paul E. M. Magès (1908-1999) mais tarde chegasse na suspensão autonivelante hidropneumática. Aproveitando as benesses do sistema de Messier, um fluido hidráulico auxiliava o ar e permitia melhor controle das oscilações e da atitude (distância ao solo) do veículo. E a Citroën a aplicou em seus veículos a partir de 1955 no novo DS 19, com alguns 15 fabricados com o sistema na suspensão traseira até saírem produção em setembro daquele ano. Carroceria constantemente nivelada proporciona mais conforto aos ocupantes; o desenho é de um DS 19 (Arte: citroenvie.com) Apostando somente no ar Seguindo a linha do puramente à ar, a Firestone Company nos Estados Unidos. ainda na década de 1930, desenvolvia as molas pneumáticas por foles (ou bolsões) cilíndricos com tampas removíveis. Logo em seguida, trabalhando para a mesma Firestone, Roy Brown inventou o fole convolucionado (em forma de toros superpostos). Convolução significa ato de enrolar para dentro. A aplicação destes produtos começou a acontecer ainda na década de 1930 em veículos experimentais como os Scarab, produzidos por William Bushnell Stout (1880-1956), que já naquela época apresentavam diferenciadores na produção como carroceria monobloco e molas helicoidais nas quatro rodas, entre outras tecnologias. Mas foi no Stout Scarab Experimental de 1946 (foto abaixo), creditado como primeiro veículo com carroceria em compósito de fibra de vidro, que surgiu aquela que é considerada por muitos como a primeira suspensão a ar plena e confiável. Recursos inovativos, como a suspensão a ar, desde cedo atraíam os empreendedores (Foto: br.wheelsage.org) O carro era um protótipo e nunca entrou em produção, mas a suspensão independente de quatro foles substituindo totalmente as molas helicoidais, e com um pequeno compressor para cada fole, tornou-se base para variantes do projeto e aplicações por outros fabricantes de componentes e de veículos. Dois anos antes, a mesma Firestone já havia atendido um cliente aplicando os foles de duas convoluções em um ônibus que só viria a ser produzido regularmente em 1953. As duas ações bem sucedidas, somadas aos resultados obtidos pela General Motors Corporation nos projetos aplicados a seus caminhões e trens de pouso utilizados durante a Segunda Guerra Mundial, deram direcionamento de utilização majoritária nos veículos comerciais e de transporte.coletivo . Estes têm maiores variações de carga e, portanto, de atitude e oscilações. Trens e metrôs foram logo considerados para aplicação e uso regular. Também nas décadas de 1940 e 1950, os técnicos de competições automobilísticas aplicavam a suspensão a ar para auxiliar na estabilidade e atitude dos carros de corrida (foto abaixo). O automobilismo, como de costume, teve marcante participação no desenvolvimento do sistema (Foto: flatout.com.br) Vai ou não vai? A contribuição em veículos leves de passageiros não era tão frutífera. Os sistemas eram lerdos para as mais rápidas reações exigidas pela dinâmica desses veículos. Mas, como era mais barata que a hidropneumática desenvolvida na França, os fabricantes de veículos americanos até insistiram nesse caminho a partir dos anos 1950. O mercado de preparação também entrou na onda e surgiram vários fabricantes independentes para componentes ou até mesmo de todo o sistema. A General Motors em 1957, por exemplo, aplicou a suspensão pneumática “Air Dome” (foto abaixo) nas quatro rodas do Cadillac Eldorado Brougham. Tinha sensores para controlar a pressão e manter automaticamente a carroceria nivelada, compensando as irregularidades dos pisos. Pouco depois, o sistema também era oferecido como opção em outros veículos da marca. Por sua própria filosofia de produto, a Cadillac foi das primeiras a oferecer a suspensão pneumática (Foto: oldcarbrochure.org) A legenda da imagem diz: "Este é o conjunto de mola a ar que é parte do sistema de suspensão do novo Cadillac de ultraluxo Eldorado Brougham. A função desse conjunto — há um para cada roda — é suportar o peso do carro, compensar irregularidades do piso sem afetar muito a posição normal da carroceria, e manter o nivelamento do veículo independente da carga a bordo." Não só nos EUA, mas em todo mundo, aplicavam-se as suspensões a ar ao menos como opcional em veículos de passageiros. Nestes, as exigências eram maiores que as para os veículos comerciais. Não surpreende, então, que o mercado tenha migrado para estes enquanto para os veículos leves de passageiros muitos fabricantes tenham até desistido de fornecer. Não faltam exemplos. Mercedes-Benz, Ford, Rolls-Royce, Toyota, entre outros, até produziram modelos com suspensão a ar. Entretanto, colocaram de lado os sistemas até que se tornassem mais confiáveis, precisos e rápidos, ou até mesmo auxiliados pela hidráulica, para voltarem a fornecer. Enquanto isso, em ônibus, caminhões e implementos rodoviários, o sistema puramente a ar ia e continua muito bem, obrigado. Bolsões e amortecedores convencionais seguem dando conta do recado. Algo promissor pela frente As aplicações se tornaram mais corriqueiras com o desenvolvimento de materiais ao mesmo tempo mais resistentes e flexíveis para os bolsões, válvulas niveladoras e sensoriamento mais precisos e, por fim, ela, a eletrônica já a partir dos anos 1980, tanto para veículos comerciais como para automóveis. Foi a Dunlop Systems Coventry na Inglaterra que desde essa década já trabalhava na introdução da eletrônica para controlar com sucesso as ações de sua suspensão a ar. Registrou a marca comercial ECAS, traduzida como Suspensão Pneumática Controlada Eletronicamente. A primeira aparição em produção regular foi registrada no Range Rover modelo 1993. O conforto e a versatilidade do ECAS podem ser alterados por controles no console (Foto: quatrorodas.abril.com.br) Em paralelo e desde a mesma época, a diversidade de modelos e mesclas com a hidropneumática se tornaram mais presentes nos portfólios dos fabricantes; mas, não em todos os tipos e modelos. No próximo artigo analisaremos o como e o porquê. Mário Pinheiro Nota NdG: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site Nobres do Grid. |