Quem trabalha com testes, e nas andanças pelo mundo, se depara com cada situação que dá o que pensar. Surpresas não faltam e uma não faltou para colegas da Cofap (hoje, Magneti Marelli) na década de 1980. Friso a época do fato, pois muitos dos protótipos testados na Europa eram os veículos que viriam para o Brasil. Por aqui, os centros técnicos para desenvolvimento local ainda eram incipientes. Naquela oportunidade, a fabricante de amortecedores trabalhando em conjunto com a fabricante do veículo, tinha como objetivo a calibração inicial de um tipo de suspensão que se tornou bem popular. A suspensão McPherson utilizada na dianteira daquele protótipo tinha modificações, possuía itens específicos e variantes de desenho peculiar, como faziam (e ainda fazem) vários fabricantes de veículos. Tarefa rotineira, mas algo não ia bem. Medição daqui, teste de rodagem acolá, dinamômetro ali, e a dianteira do carro parecia sempre presa, não obstante os amortecedores fossem aliviados nas cargas de abertura (tração) e fechamento (compressão). Mas foi observando o conjunto mola-amortecedor, na bancada antes de ir para o carro, que viram a mola com a forma (exagerando) de uma banana. (Arte: blog da engenharia 360) Bem, para quem não sabe, isso não é exatamente uma surpresa, como também não é novo o fato de que o deslocamento de molas helicoidais não é necessariamente linear. O fato é que aquela mola, naquela posição, causava um esforço radial no amortecedor, e por conseguinte, demasiada tendência em envergar a haste dele. Solução? Bom, uma delas é simplesmente mudar a mola, claro; mas, ainda mais simples é alterar a posição e ângulo do prato de apoio da mola no corpo do amortecedor para que essa força que age na transversal ajude ao invés de atrapalhar. O amortecedor agradece. Há controvérsias É ponto passivo na indústria automobilística a relação custo-benefício. Como consequência, o uso e a generalização de sistemas que a atendam. Caso e exemplo são as suspensões que precisam ser compactas, leves, de fácil manutenção e, claro, favoreçam a geometria de direção inclusive na traseira. As suspensões mais convencionais do início da industrialização eram (ainda são) aquelas em que a massa suspensa (carroceria) é assim mantida pela mola e elementos de ligação; o amortecedor serve apenas para "domar" a mola e pode até mesmo ser retirado sem que a suspensão desmonte. A massa suspensa continua suspensa, mas sem controle de oscilações se o veículo se mover. Alguns historiadores atribuem à Guido Fornaca (1870-1928), trabalhando para a Fiat, a patente em 1924 de um sistema onde o amortecedor fazia parte da estrutura da suspensão e, portanto, não poderia ser retirado sem que o conjunto se desmontasse. Não à toa recebeu o nome de strut, algo como escora, estrutura, em inglês. Mas, como sustentam outros historiadores, coube ao americano Earle Steele McPherson (1891-1960) patentear em 1946 com seu sobrenome a suspensão que colocou concêntricos o amortecedor (como sendo o elemento de ligação estrutural) e a mola helicoidal formando assim um conjunto montado na bancada e levado ao veículo para unir a roda e a carroceria. Tudo indica que ele se baseou nos trens de aterrissagem dos aviões e que consistem em duas colunas tubulares telescópicas, definição em que se encaixam muito bem os convencionais amortecedores tubulares à óleo. Surgiu destinada a atender projeto de veículos pequenos e médios, e baratos, como o Cadet 1946 da GM, incumbência de desenvolvimento dada à Earle, e do qual foram montados uns poucos protótipos com aplicação do sistema estrutural nas quatro rodas. Earle McPherson e o protótipo Chevrolet Cadet onde foi aplicada a suspensão com seu sobrenome (Foto: automotivetimeline.com) Entretanto, por razões adversas que não vêm ao caso, foi na França com o Ford Vedette (tração traseira) em 1949 que o sistema teve a primeira comercialização em escala regular de produção e venda. Outros veículos Ford, na Inglaterra e Alemanha, vieram logo em seguida e depois outros de várias marcas pelo mundo. No Brasil, o primeiro foi o Simca Chambord, fabricado a partir de 1959. Ao Ford Vedette é creditado o fato de ser o primeiro em escala industrial comercializada com suspensão McPherson (Foto: blog.jocar.com.br) Com a expansão industrial e produções em larga escala a partir da segunda metade do século XX, e coincidindo com o prazo de caducar a patente, um projeto compacto, simples e eficiente como este não poderia ser ignorado e se propagou para quase todos os fabricantes e tipos de veículos passíveis de recebê-lo. Independentemente de quem inventou o quê, o fato é que revolucionou. Simples, não? Mas tem preço a pagar por isso Boa parte dos projetos de suspensão de rodas independentes tomaram esse caminho, tanto para a dianteira como para a traseira, muitas vezes com sistemas complexos. O próprio projeto básico de McPherson sofreu e vem sofrendo constantes modificações e aperfeiçoamentos. Entretanto, isso não altera como funciona, mas sim o fato de ser aprimorada para questões que inicialmente não visava. O projeto original usava a barra antirrolagem não apenas como controle adicional da rolagem da carroceria, mas como parte integral do conjunto da suspensão e indispensável no controle longitudinal da roda; em que não podia ser removido. Em projetos posteriores, inclusive combinando a nova suspensão com tração dianteira (primeira aplicação Fiat 128, de 1969), em que a barra antirrolagem já não dava conta sozinha do controle longitudinal da roda, passou-se a utilizar de um tensor longitudinal, o que permitia até mesmo suprimir o estabilizador e baratear o custo do veículo. No Brasil vimos isso acontecer no Fiat Uno Mille, de 1990. Depois vieram os braços em forma de “A” (Audi 80, de 1972 e Passat, de 1973) e de “L” buscando uma acurada posição da roda em todos os movimentos. A questão é que a McPherson pode ser comparada em seus movimentos cinemáticos à suspensão de quadrilátero deformável, de braços transversais sobrepostos, em que o superior é substituído por um montante de fixação e articulação ao mesmo tempo. Uma das vantagens é que a relação entre o movimento da suspensão e o movimento abre-fecha do amortecedor é bem próxima de 1. Isto significa que mesmo as pequenas excitações advindas do piso são quase que prontamente amortecidas. Compacta e de ação praticamente direta do conjunto mola-amortecedor, continua sendo aprimorada (Arte: blog.jocar.com.br) Esta ótima relação, nem sempre fácil nas suspensões convencionais, é obtida na McPherson porque o amortecedor é montado entre a roda e a carroceria com inclinações nas três direções; o que é pensado para atender melhor a geometria de direção e distribuição dos esforços (que não são poucos). Cabe aqui salientar que o elemento elástico da suspensão McPherson não precisa ser necessariamente mola helicoidal, como se vê na imagem acima. Exemplo bem conhecido é o Porsche 911, de 1963, que tinha barra de torção longitudinal atrelada ao braço de controle e ancorada no monobloco. Suspensão dianteira com tipo McPherson do Porsche 911: a barra de torção está indicada pelo número 12 (Desenho: Porsche Repair Blog) Também, a mola helicoidal atrelada no monobloco leva muitos a acharem que a suspensão dianteira do Corcel é McPherson, quando é uma suspensão não estrutural, com braços de controle superpostos; mesmo arranjo é usado no Ford Maverick. Suspensão dianteira do Renault R12/Corcel, parece McPherson mas não é (Desenho: tech.racingcars.wikidot.com) Continuando com a matéria, além disso, tem efeito rotativo e deslizante. Na fixação da ponta da haste, o rolamento e bucha propiciam o efeito rotativo necessário no esterço de rodas das suspensões dianteiras, além de atenuar vibrações. Já o movimento da roda contra a mola é viável graças ao pistão ligado à haste. É por ele, deslizando no cilindro interno do amortecedor, que se controla o fluxo de óleo e, com isto, as oscilações. A reduzida quantidade de componentes, concentrando funções, aliada ao pequeno volume que ocupam, liberaram peso e espaço mais que razoável no compartimento do motor, a ponto de permitir montagem transversal deste (o que também otimizou a transmissão). Espaço de sobra no compartimento do motor é um grande trunfo desde o projeto original (Arte: accurate alignment & brake) Então podemos dizer que a consolidação do uso de motor dianteiro (longitudinal ou transversal) e tração dianteira a partir dos anos 1970 têm muito a ver com isso. Ainda como atrativos, a facilidade e simplicidade da manutenção também ajudaram. O “fusível” do conjunto em acidentes são os braços de controle ("bandejas") que se deformam para absorver energia do impacto. Mas qual o ônus a pagar por todas as benesses? O conjunto é considerado grande na vertical. E a distância entre os pontos extremos de fixação traz em si algumas consequências, e consequências das consequências. Primeiramente, por ser fixado pela haste no topo da caixa de roda, tortura os engenheiros, pois esta definitivamente não é uma das regiões mais rígidas da carroceria. A primeira consequência direta é a transmissão de oscilações e impactos com propagação de vibrações e deformação; e esta última prejudica a geometria de direção, particularmente a variação de cambagem. Não à toa, diversos veículos têm uma barra ligando as torres. Mas, como esta suspensão não foi inicialmente projetada para o melhor controle dos movimentos de roda, até dá para dizer que seu desempenho é adequado às aplicações. Segundo, como consequência indireta da altura do conjunto estão os cabelos brancos dos designers de carroceria. Eles têm de lidar com frentes não tão baixas e coeficientes aerodinâmicos não tão favoráveis. Assim, a aplicação é mais difundida em veículos compactos, médios e até mesmo alguns utilitários. Entretanto, a principal questão está na intensidade e distribuição das forças presentes no sistema. O amortecedor é parte integrante da estrutura, certo? Então, não tem como não ser mais robusto que um do tipo convencional. Precisa de haste e pistão de maiores diâmetros. O corpo também maior para armazenar mais óleo, e mais reforçado para receber os suportes de fixação da roda e o prato da mola. Gerencia os esforços e momentos, produzidos pelas movimentações da roda, que flexionam a haste em suas extremidades; uma contra a carroceria e a outra através do pistão escorado contra seu cilindro interno. Isto implica em dois problemas. O primeiro é a reação a esse atrito pistão-cilindro provocando força extra a ser vencida; é parte da histerese da suspensão. Quanto maior, pior. Ela é prejudicial porque exige do sistema uma força mínima, ao menos igual à força de atrito pistão-cilindro, para iniciar o controle dos movimentos da roda. Enquanto essa força de atrito interno não for superada, as rodas trabalham sem amortecimento e transmitem as vibrações e irregularidades através do conjunto pistão-haste-carroceria. Por isso, desde o princípio, as superfícies internas eram preparadas para esse atrito extra, principalmente as paredes do pistão. Também desde o princípio, os projetos focaram em geometria tendenciosa em minimizá-lo. O segundo problema é que esse mesmo atrito de escora traz como imposição a necessidade de mais óleo para a troca de calor do atrito, além daquela do amortecimento em si. Mesmo num esquemático simples é possível notar a complexidade em lidar com os vários esforços (Arte: Amortecedores Cofap) Uma boa solução para vários quesitos O jeito foi apelar para uma excentricidade entre amortecedor e mola onde o centro dos dois não coincida. Uma solução, a tal “mola banana”. Quando montados na bancada, essa diferença de localização dos centros produz um momento que gera uma carga inicial entre cilindro e o pistão. Ao montarmos no veículo, e com o movimento deste, a carga e a força de atrito se anulam. Ao menos é o que se espera, caso contrário a sensação será de suspensão presa, a tal da histerese desta somada à outra (desnecessária) do mencionado atrito. Como descobrir os valores? Atualmente, com a disseminação dos simuladores, basta estudar movimentos e esforços em computador e trabalhar com as dimensões disponíveis. Uma análise prática, adicional e posterior, é a que foi adotada já naquela época pelos colegas do início deste artigo. Rudimentar para os dias de hoje, mas preciso, eficaz e confiável, partiu do retrabalho da guia de haste (peça que fica na parte superior do amortecedor e por onde desliza a haste). Ela recebeu um pequeno strain gauge (medidor eletrônico de tensão em inglês) exatamente na parte de contato com a haste e assim medir a força de flexão que agia ali, desde a montagem na bancada até os testes de campo com o veículo instrumentado em movimento. Com os níveis máximos de solicitação assim obtidos é possível dimensionar componentes do conjunto mola-amortecedor, bem como determinar os momentos para neutralizar a força de flexão da haste e do pistão contra o cilindro interno. Conclusão, a McPherson é uma ótima solução; só depende de precisão e estreita margem de tolerância construtiva aplicada. Aí está uma relação custo-benefício que vale a pena, e faz muito tempo. Mário Pinheiro Nota NdG: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site Nobres do Grid. |