Hoje em dia, se falarmos a um americano entendido de automobilismo sobre as 500 Milhas de Indianápolis, provavelmente falará dos Unser, dos Andretti, de A.J. Foyt, de Rick Mears, dos estrangeiros que ganharam por lá, desde Emerson Fittipaldi a Hélio Castro Neves, passando por Jim Clark. Os ainda mais entendidos falarão se calhar de Dan Gurney, de Ray Harroun, o primeiro vencedor, dos homens que salvaram a pista em 1944, como Wilbur Shaw e Tony Hulman. Há quem falará de Eddie Rickenbacker, e ficará espantado como ele, um ás da aviação, tinha a ver com automobilismo. Ou que o fundador da Chevrolet era o irmão mais velho de um dos vencedores da competição. Mas seu falar de Ray Keech, se calhar 99 em 100 me perguntarão quem ele é. Pois bem, posso responder que ele é o único que teve duas coisas: a vitória no "Brickyard"... e um recorde do mundo de velocidade. E como no caso de Jimmy Murphy, que vos falei há uns meses, teve uma vida – e carreira – curta, interrompida bruscamente por um acidente fatal. E como a história é fascinante, de algo que aconteceu há mais de 90 anos, achei por bem trazer para aqui, pois provavelmente já não há quem esteja vivo e que tenha assistido aos seus feitos automobilísticos. Então, agora, falo de Ray Keech, provavelmente um os mais interessantes pilotos que andavam por aí há mais de 90 anos. Nascido no dia 1º de maio de 1900 em Coatesville, na Pensilvânia, batizado como Charles Raymond Keech, ficou orfão de pai aos dez meses de idade, sendo criado pela sua mãe e pelos seus tios. Casaria com Sarah Ann Stinger em 1922, e teriam um filho, Charles Jr, que nasceu no ano seguinte. Já nesta altura, apesar de trabalhar como condutor de camiões, Ray era conhecedor e estava atraído pelo fenómeno do automobilismo, especialmente nas pistas de madeira que existiam um pouco por toda a América, na expansão do pós-guerra. O seu surgimento no meio aconteceu em 1926, mas a sua ascensão foi tão veloz como a sua queda, como se fosse um meteorito a explodir. O PRIMEIRO GRANDE ANO Até ao inicio de 1928, poucos poderiam imaginar que Ray Keech acabaria doze meses depois como o homem mais veloz da face da terra em quatro rodas e vice-campeão americano, lutando por vitórias contra gente como Frank Lockhart, Fred Farmer, George Souders ou Louis Meyer. Quase na altura em que começava a correr nas pistas, a bordo de um Miller, foi atraído pelo projeto do White Triplex, montado por um industrial abastado de Philadelphia, J.H. White. O projeto era monstruoso: três motores Liberty de aviação, de 27 litros de deslocamento cada um, um total de 81 litros, e uma potência total de 1500 cavalos. O desenho do carro era complicado: dois dos três motores estavam na frente do piloto, com um terceiro atrás, o que dava complicações para o refrigerar, por exemplo. E para piorar as coisas, não tinha embraiagem nem câmbio, por exemplo. Uma vez a funcionar, tinha de o rolar e pouco mais. Havia um rudimento de aerodinamismo, com uma frente em cunha para ajudar a cortar o vento com a maior eficiência possível. E para piorar as coisas, nos ensaios, os tubos de escape dos motores da frente explodiam quase na cada do piloto que acabou com queimaduras na face. Apesar deste monstro e de todos estes problemas, em abril de 1928, Keech e o seu White Triplex, agora batizado de "Spirit Of Elkdom" estavam em Daytona no sentido de enfrentar os britânicos Henry Segrave e Malcom Campbell no sentido de lhes tirar o recorde de velocidade. Por esta altura, o recorde estava nas mãos de Malcom Campbell, que o tinha batido em fevereiro, quando estabeleceu um recorde de 333,048 km/hora no primeiro dos seus Bluebirds. Depois do carro ter passado pelo crivo dos escrutinadores, ele começou a fazer as suas tentativas de recorde, e a 22 de abril, conseguiu uma média de 334,02 km/hora, batendo por pouco o recorde anterior e fazendo com que este ficasse nos Estados Unidos. O seu nome estava nas parágonas dos jornais, mas não ficaria por ali. Poucas semanas depois, iria correr o seu primeiro Indianápolis 500, a bordo de um Miller, que também iria ser a primeira corrida da temporada americana. Keech andou bem, conseguindo o décimo lugar na grelha, e apesar de o dia da corrida ter começado molhado, os comissários consideraram as condições adequadas para a prova. Keech subiu gradualmente de posição até à volta 87, quando começou a ter problemas com uma fuga de combustível no seu carro. Chegou às boxes e entregou-o a Wilbur Shaw – pilotos de substituição eram permitidos nessa altura – e ele prosseguiu até parar na volta 116, quando saiu do carro com queimaduras na perna direita por causa da tal fuga de combustível. Feita a melhor reparação possivel, Keech prosseguiu até ao final, acabando na quarta posição... e também sofrendo queimaduras na perna. A partir dali, os seus resultados melhoraram imenso. Duas semanas depois, em Detroit, no Michigan State Fairgrounds Speedway, alcançou a sua primeira vitória, repetindo em Rockhingham Park, no New Hampshire, a 4 de julho, e a 1 de setembro, em Syracuse, no Nova Iorque, a mesma pista de terra onde quatro anos antes, Jimmy Murphy tinha perdido a sua vida. No final do ano, Keech acabou vice-campeão, num ano que não iria esquecer tão cedo. Afinal de contas, um ano antes, pouca gente sabia quem era, e agora, era recordista do mundo de velocidade e vencedor de corridas. VITÓRIA NAS 500 E O SEU ABRUPTO FIM? MEROS 16 DIAS Agora um dos pilotos mais velozes da América, Keech estava confiante de que poderia alcançar o título em 1929, já que tinha acesso às melhores máquinas. Mas para começar, logo a 11 de março, soube que Henry Segrave tinha batido o seu recorde de velocidade, perante 120 mil espectadores, em Daytona, fazendo "saltar" dos 334,007 para os 372,459 km/hora, graças ao seu Golden Arrow, equipado com um enorme motor Napier-Lion W12 de 23,9 litros, construído para... a aviação, produzindo 925 cavalos. Imediatamente a seguir, J.H. White pediu a Keech para que voltasse ao seu "Spirit of Elkom" para tentasse tirar o recorde do piloto britânico, mas ele declinou, provavelmente porque não queria nada com aquele "monstro". E de uma certa forma, os seus instintos estariam corretos. Dois dias depois, Lee Bible, um dos mecânicos que estava na equipa do White Triplex, tentava chegar perto do recorde - sem experiência anterior de condução, chegou aos 325 km/hora - quando perdeu o controlo do seu carro, capotando-o e acabando por morrer a ele, um cameraman da Pathé e um espectador. Keech tinha-se salvo da morte certa... por agora. Maio é o mês das 500 Milhas, e Keech era dos pilotos a ter em conta na prova, a par de Cliff Woodbury, o vencedor do ano anterior, Lou Moore. Até havia pilotos estrangeiros por lá, como o monegasco Louis Chiron, a bordo de um Delage, tentarem a sua sorte. Um grande curiosidade é que o seu Miller tinha sido inscrito... por uma mulher, Maude A. Yagle, Ele ficou em sexto na grelha, fazendo uma média de 116,914 milhas por hora (184.923 km/hora) confirmando de uma certa maneira que ele poderia ser um dos candidatos ao primeiro lugar. Nas primeiras voltas, Keech saltou para a segunda posição, atrás de Leon Duray enquanto atrás na volta 10, Bill Spence sofria um despiste e era ejetado do seu carro. Socorrido de imediato, acabou por morrer a caminho do hospital, com uma fratura do crânio, tornando-se no primeiro piloto a morrer na corrida desde 1919. Nada disso afetava Keech, que na volta 21, trocou de pneus e voltava à pista na décima posição. subiu até ao quarto lugar perto da primeira metade da corrida, até parar pela segunda e última vez na volta 109, para trocar de pneus e reabastecer, algo que durou três minutos. Regressando na décima posição, rapidamente chegou ao segundo posto, atrás de Louie Meyer, que acabou por ir às boxes, mas a sua paragem para reabastecer foi um desastre e durou... sete minutos! Moore ficou como segundo posto, mas a duas voltas do final, o seu motor estava nas últimas e na curva 2, este cedeu, perdendo o segundo lugar para Meyer, que tentava recuperar o tempo perdido. Vtorioso na sua segunda participação e recolhendo 31.350 dólares de prémio, ele era o favorito à vitória do campeonato, porque vencer ali era o equivalente a mil pontos. Chiron foi o melhor estrangeiro, terminando em sétimo. Uma semana depois, em Detroit, Keech foi o poleman na corrida realizada no Michigan State Fairgrounds Speedway, mas Cliff Woodbury foi o vencedor. Uma semana depois, estava em Altoona Speedway, na Pensilvânia, uma prova de 200 milhas realizada num circuito de madeira. Perto do final, Keech liderava a prova quando Rob Robertson passou por cima de um buraco e ele foi contra uma placa de madeira. No impacto, este foi para a pista, e Cliff Woodbury tentou fugir dos destroços, mas ao fazê-lo, bateu no carro de Keech, que também tentava escapar desses destroços. O carro capotou e acabou incendiado, e ele acabou ejetado, no caminho do seu próprio carro descontrolado. Acabou por ser atingido na cabeça e teve morte imediata, com a mulher e o seu filho a assistirem a tudo nas bancadas. Keech tinha 29 anos, e era o terceiro vencedor das 500 Milhas a morrer no mesmo ano da vitória, depois de Gaston Chevrolet, em 1920, e Joe Boyer, em 1924. No final, foram meras duas semanas desde a glória até a sua morte, e o final de uma carreira que durou pouco mais que duas temporadas, onde pelo meio conseguiu feitos inéditos no automobilismo. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira Nota NdG: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site Nobres do Grid. Não deixe de visitar a página do nosso colunista no Facebook. |