Depois da II Guerra Mundial, a América do Sul se tornou num dos lugares onde o automobilismo ajudou a reerguer-se, depois da destruição europeia. A Argentina, com as suas corridas, primeiro as que ligabam cidades a cidades, e depois as de circuito, especialmente em Buenos Aires, ajudaram a mostrar-se contra a concorrência europeia e mostraram ao mundo gente como Juan Manuel Fangio, “El Chueco”, José Froilan Gonzales. E o facto de correrem no verão austral, especialmente janeiro e fevereiro, ajudou muito para preencher o calendário na altura do ano onde havia frio e neve no hemisfério norte. Mas não foi só a Argentina que recebeu máquinas e pilotos, ajudados por um regime, o de Jun Domingo Peron, que adorava automobilismo. Temos também Cuba, que em 1957 e 1958 recebeu os melhores pilotos do mundo num circuito desenhado nas ruas de Havana, e que teve um final atribulado, com o rapto de Fangio pelos rebeldes da Sierra Maestra. E que mostrou ao mundo que politica e automobilismo andavam de mãos dadas, como manifestação de relações públicas. Existe um terceiro país que é pouco falado, que usou os mesmos métodos da Argentina e de Cuba, para ser a montra de um regime autoritário, chefiado por um general, e que trouxe os melhores pilotos do mundo para um circuito desenhado nas ruas da sua capital, e que, quando o ditador caiu, as corridas deixaram de acontecer. Eu falo da Venezuela. Entre 1955 e 1957, gente como Stirling Moss, Phil Hill, Jean Behra, Peter Collins, correndo em carros como Mercedes, Porsche, Maserati, Gordini, entre outros, e correndo contra alguns pilotos locais, correram num lugar chamado Los Proceres, onde quando os bólidos velozes não corriam, havia... desfiles militares. Foram anos fascinantes, de um país que queria se mostrar ao mundo, de um ditador que adorava velocidade que usurpou um Mercedes 300 SL e deixou que Fangio o guiasse e se tornou no local do canto do cisne de uma mitica marca do automobilismo. A MONTRA DOS DITADORES Comecemos pela História. Em 1948, depois de três anos de uma democracia agitada, um golpe de estado depôs o governo civil da Ação Democrática – chamado este periodo de Triénio Adeco - e colocou os militares no poder. O presidente eleito no inicio desse ano, Romulo Gallegos – nas primeiras eleições diretas para presidente – fora deposto por Carlos Eduardo Chalbaud, o seu ministro da Defesa e o chefe das forças Armadas. Seguiu-se um periodo de instabilidade dentro dos próprios militares, que formaram uma Junta, com Marcos Perez Jimenez, então com 34 anos, como Ministro da Defesa. As coisas chegaram a um ponto que, a 13 de novembro de 1950, Chalbaud é raptado e assassinado por Rafael Simon Urbina, e até hoje, acredita-se que teve o dedo de Perez Jimenez, que queria o poder. Houve novas eleições em 1952 e quando parecia que a oposição iria ganhar, a Junta interferiu e manipulou os resultados a seu favor. Jimenez, que era o chefe das Forças Armadas, tornou-se no presidente, tomando posse a 2 de dezembro desse ano. Uma Constituição foi feita e que lhe dava poderes ilimitados ao presidente para que ele pudesse manter a paz e a ordem a todo e qualquer custo. Para mostrar serviço, Perez Jimenez embarcou num ambicioso programa de obras públicas, que o fez construir auto-estradas, pontes, compleos habitacionais, expandindo enormemente a economia. Mas como muitos dos ditadores de um passado recente, era amante do automobilismo. Aquilo que fazia não era nada que, na Europa, Hitler e Mussolini tinham feito. Mas ele queria colocar o seu país no mapa-mundo do automobilismo. E que melhor não seria um Grande Prémio na capital, Caracas? De uma certa maneira, o local escolhido demonstrava um pouco o regime: Los Proceres era a praça onde as forças armadas desfilavam nos dias mais importantes do país, como o aniversário da independência. O lugar, que fazia parte da auto-estrada entre Valle-Coche, tinha sido mandado construir por ele, para homenagear os liberdadores do país – e da América Latina, em muitos aspectos – e o circuito era enorme, com 9930 metros, e tinha longas retas, e as curvas eram feitas à volta dos monumentos que estão nas pontas dessa larga avenida, um pouco à semelhança do circuito de Avus, em Berlim. Os pilotos mais rápidos faziam em menos de quatro minutos. Contudo, nem todos gostavam de lá correr. Como na altura, a superfície era de cimento e betão, era complicado para alguns pilotos, pela sua pouca aderência. Phil Hill, piloto da Ferrari nesses tempos, disse que conduzir ali era um “pesadelo surrealista”. POPULAR, MAS... A primeira edição aconteceu em 1955, e os melhores pilotos foram logo convidados a participar, correndo contra os melhors pilotos locais, como por exemplo, Ettore Chimeri, que não era mais que um italiano que emigrou para Caracas no final da II Guerra Mundial. Maserati, Ferrari e Porsche foram algumas das marcas que lá foram, e o triunfador acabou por ser Juan Manuel Fangio. O público aderiu em massa, vendo os pilotos passarem nas bermas, onde podiam assistir de graça. E se podiam fazer isso, então escusavam ir para as tribunas, vazias, causando um embaraço ao ditador, mostrando que o povo não estava mesmo com ele. Resultado final: o Touring Club Automovil de Venezulela, entidade organizadora, acabou com um prejuízo de cem mil dólares. Em 1956, a organização e o governo apoiou fortemente a segunda edição da corrida, com mais pilotos de prestigio, acabando com a vitória de Stirling Moss, no seu Maserati, que levou para casa um troféu de ouro maciço. A organização foi melhor, a corrida foi bem popular, mas os organizadores acabaram com prejuízo na mesma. Contudo, apesar destes obstáculos, o esforço compensou: em 1957, a corrida iria fazer parte do Campeonato do Mundo de Sportscar, e seria a corrida decisiva do campeonato. Mas apesar do prestigio, a organização estava na corda bamba. O CANTO DO CISNE DA MASERATI Em 1957, a Maserati estava em alta. O seu modelo 250F era o melhor do pelotão da Formula 1, Juan Manuel Fangio tinha batido sem apelo, nem agravo, os Ferrari de Peter Collins e Mike Hawthorn, bem como os Vanwall, carros britânicos guiados por pilotos como Stirling Moss e Tony Brooks. Também estava em alta nos Sport e Endurance, embora tivessem falhado o triunfo nas Mille Miglia, vencidas pelo Ferrari de Piero Taruffi, e nas 24 Horas de Le Mans, ganhas pela Jaguar. Os 300S e 450S eram os seus carros, e para a competição venezuelana, trouxeram quatro carros, que iriam ser guiados por gente como Moss, Fangio, Behra o sueco Jo Bonnier e os americanos Harry Schell e Masten Gregory, num carro inscrito pela Temple Buell. A corrida tinha uma grande novidade: iria contar para o campeonato mundial de Construtores, ou seja, Ferrari e a Porsche, por exemplo, iriam fazer companhia à Maserati naquela que iria ser a última corrida da temporada, marcada para o dia 11 de novembro. A Maserati estava sobre brasas: não tinha pontuado em Le Mans e precisava que a Ferrari tivesse um mau dia para descartar esses pontos e ela triunfar, para ser a campeã. E não era só a equipa que estava sob brasas: o regime também. Apesar do desenvolvimento e da prosperidade do país, das auto-estradas e demais obras públicas, o regime de Perez Jimenez era contestado pela sociedade em geral, desde os estudantes até às classes mais altas, que desejavam uma abertura democrática, eleições e o regresso dos partidos politicos. A oposição já se organizava e alguns elementos do próprio exército eram sensíveis ao que se passava na sociedade. E para piorar as coisas, no dia da corrida, o tempo não ajudava: estava quente e húmido. Nada bom para carros e pilotos que iriam encarar 101 voltas, num total de 1003 quilómetros. Os carros iriam partir ao estilo Le Mans – carros na diagonal, pilotos a correrem do outro lado da pista rumo aos seus bólidos – mas na manhã da corrida, inesperadamente, Perez Jimenez quis cumprimentar os pilotos um a um. Este evento não pleaneado atrasou tudo em algum tempo e colocou toda a gente ainda mais nervosa como estava, a começar pelos organizadores. Na partida, os Maserati ficaram parados, enquanto os Ferrari foram para a frente, mas quem liderava era o Corvette inscrito por Dick Thompson, com os Ferrari logo atrás, esperando pela sua oportunidade. Pouco depois, o Maserati da Temple Buell, guiado por Masten Gregory, passou-os a todos e ficava com a liderança. Outro 450S, guiado por Behra, era terceiro, atrás do Ferrari de Hawthorn e Collins. Mas os sarilhos começaram cedo para os Maserati. Gregory desistia, com o carro da Temple Buell, mas entretanto, Moss recupera o tempo perdido – passou 22 carros numa só volta! - e apanha não só os da frente, como os passa, ficando com a liderança. Aqui, a Maserati tinha tudo controlado: Moss em primeiro, Behra em segundo, e o 300S de Jo Bonnier em terceiro, passando até o Ferrari dos britânicos. Contudo, na 32ª passagem pela meta, o desastre. Moss apanhava o AC Ace de Joseph Hap Dressel quando este virou para a direita para o deixar passar. Contudo, ambos desentenderam-se e bateram forte. O AC ficou cortado ao meio, por causa de um poste de iluminação, e Dressell safou-se por pouco. O carro de Moss tinha a frente toda destruida e atrasava-se. Quatro voltas mais tarde, Behra leva o seu carro para as boxes, no sentido de o reabastecer. Contudo, quando o procedimento acabou e a equipa assinalou ao francês para partir... uma bola de fogo surgiu do carro, obrigando ele e um dos mecânicos, Guerino Bertocchi, a escaparem pela vida, com chamas no seu corpo. Os bombeiros apagaram logo as chamas, e ambos foram transportados para o hospital, com queimaduras graves no caso de Bertocchi. Nello Ungolini decidiu que Moss, nas boxes e ainda a recuperar do acidente, fosse guiar o carro de Behra, que estava chamuscado, mas intacto. Contudo, uma volta depois, Moss regressou porque o assento ainda estava a arder... e ele também! Apagadas as chamas, foi a vez de Harry Schell a guiar o carro, o terceiro piloto em três voltas. O americano foi para a pista, andou no seu ritmo e em pouco tempo, estava na liderança. Contudo, na volta 55, quando passava Bonnier, que iria perder uma volta, o sueco sofre um furo. Apesar de controlar da melhor maneira que podia, ficou na trajetória de Schell e ambos colidiram. O carro de Bonnier foi cortado ao meio por um poste de iluminação, mas o sueco sobreviveu, enquanto Schell foi projetado do carro, escapando ileso e batendo contra um muro, metros à frente do outro Maserati. Para piorar as coisas, o poste caiu... em cima do seu carro em chamas, felizmente sem consequências fisicas para os pilotos. Mas para a Maserati, as suas chances de título tinham acabado. A Ferrari triunfaria em linha, com os quatro primeiros lugares, com Collins e Phil Hill em primeiro, uma volta na frente de Mike Hawthorn e o italiano Luigi Musso. Os alemães Wolfgang von Trips e Wolfgang Seidel foram terceiros, enquanto o melhor Maserati foi um 300S guiado pelos locais Mauricio Marcotulli e Ettore Chimeri, que ficaram na sexta posição, a dez voltas do vencedor. TUDO TEM UM FIM, A BEM E A MAL Aquela tarde desastrosa causou um golpe profundo na Maserati. Duas semanas após o GP venezuelano, a marca declarava falência e os seus bens iam para um administrador. A sua presença no automobilismo tinha-se ido em chamas, numa tarde de calor em Caracas. Os carros continuariam a correr em di versas corridas, mas todas nas mãos de privados. Alguns meses depois, em Reims, palco do GP de França, foi a bordo de um desses carros que Juan Manuel Fangio se despedia do automobilismo. E quase a seguir, a revolução do motor traseiro fazia dos 250F de Formula 1 monstros obsoletos. Mas em Caracas, os dias de Perez Jimenez estavam contados. Acossado em todo o lado, por causa do seu reinado de pulso de ferro, até os militares estavam fartos dele. A 23 de janeiro de 1958, um golpe de estado colocou tanques nas ruas e este fugiu para os Estados Unidos, onde ficou até 1963, quando foi extraditado para o seu país natal, onde foi acusado de ter tirado mais de 220 milhões de dólares dos cofres do estado. Passou cinco anos na prisão, aguardando julgamento, mas quando aconteceu, o processo prescreveu, e exilou-se em Madrid, onde morreu a 20 de setembro de 2001, aos 87 anos. Quanto ao GP venezuelano, a organização, sem o apoio do seu patrono, não teve mais a capacidade de fazer algo parecido. Ainda por cima, nunca foi uma corrida lucrativa, e o novo regime nada queria ter a ver com coisas ligadas a ditadores. Tinham de passar quase 20 anos para o país estar nas luzes da ribalta. E foi no motocliclismo, com gente como Johnny Ceccoto ou Carlos Lavado, entre outros. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira Nota NdG: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site Nobres do Grid. Náo deixe de visitar a página do nosso colunista no Facebook. |