O verão é boa altura para pausa, e agosto, ainda melhor. Não é por acaso que chamam por aqui de "meu querido mês de agosto", porque é quando aqui em Portugal, dezenas de milhares de pessoas, especialmente de lugares como França, Luxemburgo, Suíça, Alemanha ou Reino Unido, por exemplo, regressam às suas terras, especialmente no interior, para passar um mês a visitar os seus parentes. E, como sabem, o automobilismo também aproveita o agosto para fazer uma pausa, decidi pegar noutra minha atividade favorita: a leitura de livros. E peguei num que apanhei, por acaso, numa Feira do Livro por aqui e comprei, esperando por uns dias na praia para fazer as devidas leituras. E o livro que andei a ler por estes dias foi a autobiografia de Enzo Ferrari: "As Minhas Alegrias Terríveis". Até calha bem, porque este ano passam os 125 anos do seu nascimento e os 35 da sua morte. Bastou-me um fim de semana para lê-lo - comecei numa sexta-feira à tarde e acabei dois dias depois - e é sobre ele que irei falar. AS MINHAS AMARGAS ALEGRIAS Escrito originalmente em 1962, mostra uma faceta de um Ferrari que era notoriamente reclusivo. Mostrar-se como ser humano não era algo normal, e na altura, as suas memórias - ou autobiografia, se preferirem - foi um grande sucesso, acabando por se vender cerca de cem mil exemplares, só em Itália. Tanto que existiram reedições e modificações em 1964 e um dos seus capítulos - "Piloti, che gente!" - deu até um livro à parte, que teve atualizações até 1987, um ano antes de morrer, e com uma introdução de Piero Lardi Ferrari, o seu segundo filho e herdeiro. Ali, explica as suas origens, na Emilia-Romagna natal – ele é de Modena – e que foi registado dois dias depois do seu nascimento, alegadamente por causa de um nevão. Fala também de uma adolescência dificil – combateu na I Guerra, numa altura em que morreram o pai e o seu irmão mais velho – de como foi à procura de trabalho em Milão e acabou como piloto, primeiro na CMN, antes de ir para a Alfa Romeo, onde correu ao lado de alguns dos melhores pilotos italianos da época, como Ugo Sivocci, Giuseppe Campari, António Ascari e sobretudo, Tazio Nuvolari. Depois, fala da sua transição para diretor da equipa – funda a Scuderia Ferrari em 1929, para lidar com carros da Alfa Romeo – e da razão pelo qual deixou de correr: o nascimento do seu filho Alfredino (Dino), em 1932. Ele depositou imensas esperanças nele. Não só por ser seu filho, mas também por ser um engenheiro capaz – o motor Dino de 2.4 litros é obra dele – mas sofria de nefrite, uma doença nos rins, e acabou por morrer em junho de 1956, aos 23 anos. Ferrari sofreu imenso pela sua perda – aliás, é a ele que dedica a sua autobiografia – e sentiu a sua falta até ao fim, porque sabia que tinha imensas coisas em comum, e acreditava - não fala explicitamente, mas entende-se nas linhas - que acreditava que poderia continuar com o legado da Scuderia. De resto, nesta parte, fala muito sobre a parte técnica – os motores, as corridas, os chassis, a engenharia, os regulamentos – e não escapa às controvérsias. Na edição de 1964, fala abertamente sobre o duelo "Ford vs Ferrari", dando a sua explicação dos acontecimentos, afirmando que ele se sentiu enganado com as condições que a casa de Detroit lhe dava, e depois, também fala da polémica que aconteceu mais tarde, quando se zangou com a CSAI, a associação automobilística italiana, que afirmou que não defendia os seus interesses em relação ao regulamento que ia aparecer em 1966, dos motores de 3 litros, do qual chegou a correr as corridas americanas pelas cores dos Estados Unidos – a NART, do seu colaborador Luigi Chinetti - e no qual acabou por ganhar o campeonato daquele ano, com John Surtees ao volante. Tem um enorme carinho pelas Mille Miglia, corrida do qual triunfou diversas vezes, mas também não se coibiu de responder às polémicas, especialmente quando Alfonso de Portago se despistou na edição de 1957, matando-se, ao seu navegador e a mais sete pessoas, causando a sua definitiva interrupção, na forma que tinha então. Defendeu a sua inocência, afirmando que o acidente foi infeliz e não tinha tido origem em qualquer defeito no seu carro ou nos seus pneus. No final, defendeu até a ressuscitação das Mille Miglia, numa forma que respeitasse o seu espírito de competição. De uma certa forma, isso aconteceu. Agora é disputado como rali de clássicos. PILOTOS, QUE GENTE! Um capítulo à parte é um dedicado aos pilotos. Sendo ele um antigo piloto, Ferrari não coibiu de fazer avaliações sobre pilotos de três gerações, que abarcaram quase um século de automobilismo, desde os primeiros tempos – gente como Felice Nazzaro ou Piero Bordino, que competiram antes da I Guerra Mundial – até aos anos 80, como Nigel Mansell, Gerhard Berger, Michele Alboreto, Alain Prost ou Ayrton Senna. Há parágrafos inteiros dedicados a pilotos que admirava e teve nas suas fileiras: Antonio Ascari, Ugo Sivocci, Giuseppe Campari, Tazio Nuvolari, Achille Varzi, Alberto Ascari, Froilan Gonzalez, Eugenio Castelloti, Mike Hawthorn, Peter Collins, Phil Hill, Lorenzo Bandini, Ricardo Rodriguez, John Surtees - e nas edições posteriores, Ludovico Scarfiotti, Jacky Ickx, Niki Lauda, Jody Scheckter, Gilles Villeneuve, Didier Pironi, René Arnoux e Michele Alboreto. Fora desse núcleo, outros pilotos deu extensos parágrafos, especialmente dois: Juan Manuel Fangio e Stirling Moss. Também falou sobre Jim Clark, Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi e Ronnie Peterson, do qual correu apenas na Endurance. Sobre o argentino, na altura em que escreveu as suas memórias, passava por uma polémica por causa de uma autobiografia que ele mesmo tinha escrito, onde não falou muito bem de Ferrari no seu ano na casa de Maranello, em 1956. Não fugia à polémica e rebateu as acusações ponto a ponto, chegando à conclusão que não tinha quaisquer ressentimentos – chegou até a afirmar que os fazia com um sorriso nos lábios, sinal de algum sarcasmo – e numa edição posterior, afirmou que em 1968, quando Fangio estava na Europa a promover o Torino, o carro argentino para as 96 Horas de Nurburgring, esteve com ele em Maranello e acertaram contas, resolvendo os mal-entendidos com quase uma década. De uma certa forma, a partir de então, o relacionamento entre ambos melhorou bastante. Acerca de Moss, ele falou muito bem sobre ele, sobre o seu estilo de condução e de como o admirava, e falou sobre os planos que tinham para 1962, quando acordou com ele o empréstimo de um chassis 156 para essa temporada, antes do acidente que teve em Goodwood, que levou ao final abrupto da sua carreira, quando ele tinha então 32 anos. Ferrari lamentou o acidente e falou sobre as possibilidades que ficaram no ar, se não tivesse acontecido aquele acidente. Em suma, a sua autobiografia é extensa, por vezes técnica demais, mas ele deixou, sobretudo, uma enorme impressão sobre as coisas à sua volta. Uma impressão humana de pessoas e carros, de um certo período do século XX italiano, que vivia a prosperidade do pós-guerra. E disso, não há muito. Há muitas ótimas biografias e autobiografias por aí, e este é um dos que fica bem na estante de qualquer amante de automóveis e do automobilismo. Saudações D’além Mar, Paulo Alexandre Teixeira Visite a página do nosso colunista no Facebook Nota NdG: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do site Nobres do Grid. |