Nestas férias de verão aqui do Brasil recebemos a visita de um dos primos do meu pai, o Miguel. Português da região do Porto, mas longe da cidade, vivendo no interior, de onde toca um vinhedo e uma transportadora, herança deixada pelo seu pai... que “era um típico Alencar”. Ao final da II Guerra Mundial, com a Europa se reconstruindo, o Tio Manoel – pai do Miguel – comprou um caminhão e tornou-se o que eles chamam lá na terrinha de “contratante de transporte”. Como o dinheiro era curto e a infraestrutura estava sendo remontada, quem tinha algum trocado para investir prosperou... e o negócio cresceu. Em meados dos anos sessenta, a família poderia ser considerada rica. Afinal, tinham um negócio muito grande, com a frota chegando a cerca de duas centenas de veículos, aproximadamente, embora ele não tenha certeza do número. Segundo o Miguel, havia duas coisas sobre seu pai que ele tinha como marcas registradas: Uma era o fato de nunca ter visto o pai usando um “fato”, que é como os portugueses chamam um terno. Ele era invariavelmente visto usando macacões – “fato macaco” para os patrícios – ou outra roupa de trabalho, e a outra era que – para ele – o único carro do mundo era um Jaguar, o resto era o resto. Um dia, logo após a Jaguar lançar o XJ 6 (Série 1), com todos ainda em casa na hora do “pequeno almoço” (o café da manhã), falou: “Eu vou comprar um novo XJ 6. Você gostaria de vir comigo?” perguntou ao filho. Para tal, teríamos que ir até Lisboa... e tomamos o rumo da capital, onde ficava àquela altura a única revenda da tradicional marca inglesa no país. Foram quase 5 horas de viagem, mas um passeio até a capital era sempre algo interessante. Em chegando ao “sítio” (local) e de apreciarmos o carro pela “montra” (vitrine), os dois entraram na loja e logo estavam dentro do carro, no reluzente salão da revenda. Por serem carros caros e sofisticados, certamente os vendedores deveriam estar acostumados com eu determinado tipo de público e logicamente os dois “destoavam na paisagem” e do contexto daquela que seria a clientela usual. Lançado em 1968, o Jaguar XJ 6 era um dos melhores carros já produzidos pela renomada marca britânica em todos os tempos. O 'Seo' Manoel saiu de casa como se estivesse indo para a garagem, com o seu macacão e o Miguel usava um jeans e uma camisa de flanela. Conhecedor da marca como poucos, o patriarca explanava sobre as virtudes dos carros da marca e, depois de mostrar o interior em detalhes, começou a circular o carro, mostrando os pontos mais chamativos do carro. Não demorou muito para que um vendedor se aproximasse. – “Posso ajudá-lo, senhor?” – “Sim, o senhor pode. Poderia dizer-me o preço deste veículo.” O vendedor citou um preço que era quase duas vezes o valor de tabela, acrescentando: – “Mas o senhor certamente não pode pagar por ele. Sendo assim, peço-vos que deixem o nosso estabelecimento imediatamente!” Certamente dizia isso vendo os trajes com os quais estávamos vestidos e o peculiar sotaque da região norte do país. O preço era, em si, não é incomum. Nos primeiros meses de produção, esses carros estavam vendendo bem e se houvesse algum ágio, não seria surpresa. Afinal, eram muito desejáveis. No entanto, aquela atitude do vendedor deve ter deixado o pai do Miguel furioso. Ele confessa não saber como o pai não mandou uma “pêra” (soco) daqueles de estilhaçar qualquer dentadura no engravatado senhor que nos atendia. “Fiquei muito surpreso com a calma com a qual ele me pegou pelo braço e dirigiu-se à porta. Se o vendedor tivesse visto o carro com o qual os seus "mal vestidos clientes" haviam chegado certamente teria agido diferente. Saímos da revenda e, no passeio (calçada) ele parou. Ao invés de seguirmos para o carro (um Jaguar Mark II), o ‘Seo’ Manoel dirigiu-se a uma cabine telefônica. Pediu que eu o esperasse ali mesmo onde me deixou. Cerca de 10 minutos depois, retornou.” – “Estamos indo para casa?” Perguntou o Miguel. – “Não, nós estamos indo de volta para a comprar o carro!” Mal contendo o riso, Miguel narra: “Voltamos. Quando entramos, nós ainda conseguimos ver o vendedor em seu escritório, falando ao telefone com uma expressão tensa no rosto. Quando ele desligou o aparelho, saiu a passos largos e rápidos em nossa direção, tomando o caminho mais curto possível. Eu esperava o pior, mas fui surpreendido.” – “Você sabe o que você vai fazer?” Perguntou o meu pai. – “Sei sim senhor”, disse o vendedor “Eu vou vender o Jaguar ao senhor!” – “A que preço?” Perguntou meu pai. – “O valor de tabela”. – “E então, depois da venda, o que você vai fazer?” Concluiu o pai. – “Limpar a minha mesa, e ir para casa. Eu só tenho o saco (Sobretudo)!” Disse o vendedor. “Eu não entendi direito o que se passou. Não demorou para que os papéis referentes à compra do XJ 6 fossem assinados, e saímos. Perguntei ao meu pai se ele tinha algo a ver com o vendedor parecer ter sido despedido.” – “Sim, eu tenho”, ele respondeu: “O telefonema que eu fiz foi para o proprietário da revenda. Eu disse a ele que o vendedor foi rude comigo.” – “Mas isso é razão suficiente para alguém demitir um empregado?” Perguntou Miguel – “É quando eu compro todos os meus carros deles!” Respondeu o pai! A vida pode ser tão cheia de surpresas, não? Após passarem a noite em belo um hotel na 'cidade luz', no dia seguinte, enquanto o patriarca voltava para casa ao volante de seu novo carro, enquanto Miguel o seguia com o MK II, que acabara de herdar! Felicidades e velocidade, Paulo Alencar |