Saudações d’Alem Mar! Se o Brasil têm Óscar Niemeyer, o arquiteto que desenhou Brasília e aos 104 anos, é uma perso-nalidade reverenciada por todos no Brasil, já Portugal tem uma personalidade semelhante, em termos de fama e longevidade. Manuel de Oliveira é, aos 103 anos de idade – completará 104 a 11 de dezembro, o realizador mais velho em atividade e ainda com vitalidade suficiente para realizar um filme por ano. O seu mais recente filme é “O Gebo e a Sombra” e a sua maneira de filmar é reverenciada pelos críticos de todo o mundo, especialmente em França. Contudo, o realizador da cidade do Porto – cujo primeiro filme é de 1931 – tem também outra faceta menos conhecida. Desportista nato na sua juventude foi ator, mas sobretudo… corredor de automóveis. Manuel de Oliveira é o irmão mais velho de Casimiro de Oliveira, piloto de “Sport” nos anos 40 e 50, sendo o primeiro a correr de Ferrari em terras portuguesas. Mas na década de 30, ao volante de um Ford, Casimiro e Manuel foram ativos pilotos de automóveis, até com passagem pelo Brasil, mais concretamente pelo Circuito da Gávea, correndo com algumas das lendas do seu tempo. E é sobre isso que falo este mês. Nascido na cidade do Porto em 1908, começou a filmar em 1927, mas é só em 1931 que completa a sua primeira longa metragem, “Douro, Faina Fluvial”. O filme foi mal recebido pelo público, mas elogiado por críticos estrangeiros, como o dramaturgo italiano Luigi Pirandello. Continuou na indústria, sendo ator no primeiro filme sonoro português, a comédia “A Canção de Lisboa”, em 1933, mas no seu tempo, o cinema era mais uma das suas atividades, pois era considerado uma pessoa versátil. De feito atlético e desportista de eleição, o automobilismo era uma dessas vertentes, graças à influência do seu irmão mais velho, Casimiro, um dos melhores pilotos do seu tempo, a par de Vasco Sameiro. A sua curta carreira no automobilismo (1935-1940) foi bem preenchida. Venceu corridas e até serviu de motivo para o seu segundo filme: o documentário “Já se Fabricam Automóveis em Portugal”, que o fez para lustrar a construção do seu automóvel, o Ford V8 Voiturette, que tinha um motor… de 3 litros. Começa a correr em Abril de 1935, numa gincana no Palácio de Cristal, na cidade do Porto, ao volante de um Fiat Ballila, prova essa em que ganhou. E isso o faz com que alimente o bichinho do automobilismo, tanto que em 1936, graças aos conhecimentos do seu irmão, adquire um BMW e corre no Circuito de Vila Real, onde se sai bem, terminando no segundo lugar. Isso é mais do que suficiente para que se dedicasse um pouco mais aos automóveis. E é nessa altura em que conhece Eduardo Ferreirinha, engenheiro e piloto, que por essa altura se dedica a transformar um Ford de 3 litros vindo dos Estados Unidos. Ferreirinha trabalhava na garagem de Manuel Menéres, representante da marca americana na cidade do Porto, e com o tempo, precisava de um piloto capaz de pilotar e ajudar a trabalhar no desenvolvimento do carro. E assim, a partir de 1937 começa uma parceria que daria imensos frutos. Nesse ano, participa no Grande Prémio do Estoril com o seu Ford V8, e domina a concorrência, apesar da oposição do piloto britânico Edward Rayston, no seu Maserati, que o ultrapassa no inicio da prova. Manoel de Oliveira reage e o ultrapassa, afastando-se com facilidade até à meta, vencendo com enorme folga. Essa vitória nas ruas da vila do Estoril faz com que se pense em altos vôos, nomeadamente… o Brasil.
Por essa altura, o Circuito da Gávea era das provas mais desafiadoras do mundo, e um dos apelidos mais famosos era o “Trampolim do Diabo”. No final de 1937, os irmãos Oliveira recebem um convite para participar no Grande Prémio Internacional do Rio de Janeiro, que iria ser disputado a 12 de junho de 1938, e do qual alguns dos grandes pilotos de então tinham sido convidados, como o italiano Carlo Pintaccuda, por exemplo. Manoel de Oliveira prepara-se para a competição, quer fisicamente, quer mecanicamente. Em março desse ano, na Rampa do Gradil, uma prova de montanha, faz o melhor tempo com o seu Ford e sobe ao lugar mais alto do pódio. Pouco tempo depois, ele e o seu irmão – este num Bugatti – ambos pintados de vermelho e branco, as cores que Portugal usava nas provas internacionais de automobilismo, embarcavam para o Rio de Janeiro. Chegados à então capital do Brasil, são recebidos em apoteose pela comunidade portuguesa, e entre jantares e homenagens, preparam os carros para a corrida disputada no difícil Circuito da Gávea, que já tinha o apelido de “Trampolim do Diabo” devido á sua extensão e respetiva dificuldade. A corrida acontece a 12 de junho, e os irmãos Oliveira não estão no lote de favoritos à vitória, dado que o Alfa Romeo do Conde Carlo Pintacuda era um dos oficiais. Mas isso não os impediu de darem o seu melhor, esperando que os carros aguentassem e pudessem alcançar um resultado honroso. E assim foi: apesar de todas as dificuldades, Manoel de Oliveira consegue um honroso terceiro lugar, atrás apenas de Pintacuda e do argentino Arzani. O seu irmão, Casimiro no seu Bugatti, acabou no quinto posto, e o resultado de ambos os pilotos foi comemorado como se de uma vitória se tratasse – afinal de contas, no caso de Manoel de Oliveira era um chassis modificado em Portugal – e também se tornou no primeiro grande resultado internacional alcançado por um piloto português. O “Diário Português”, um dos jornais do Rio de Janeiro, falou sobre o feito de Manoel de Oliveira da seguinte forma: “Manoel de Oliveira conseguiu para o nosso país uma colocação magnífica e proclamou com esse feito a vitória da indústria portuguesa no Grande Prémio da Cidade do Rio de Janeiro. O seu Ford que não é um Ford adaptado e muito menos um Ford “arranjado” como lhe chamou um locutor pouco feliz, tem características especiais industrializadas por um engenheiro português, em oficinas portuguesas. Trata-se de uma máquina em que o próprio motor sofreu modificações profundas. È, como consta da sua inscrição no Automóvel Club do Brasil, um Ford Especial. Produto da indústria portuguesa em combinação com a marca Ford, graças a inovações técnicas de Eduardo Ferreirinha que constrói em Portugal os carros “Edfor”, entre os quais se conta aquele com que Manoel de Oliveira ganhou o terceiro prémio do Circuito da Gávea. Tanto Manoel de Oliveira como seu irmão Casimiro mostraram desde o começo uma regularidade que fazia prever a sua actuação tal como foi. Cautelosos com o estado pouco favorável da pista, nem por isso deixaram de melhorar progressivamente a sua colocação. Quando a pista secou tendo melhorado o tempo, eles desenvolveram melhor velocidade. Manoel de Oliveira impôs-se como volante de classe, calmo, corajoso e correcto. Os próprios indiferentes que infelizmente os havia entre os espectadores foram vencidos e passaram a aplaudi-lo sem reservas.” Elogiado pelos adversários, recebeu depois convites para correr de novo no Brasil, em 1939, e também na Argentina, graças ao convite de Arzani. E um dos jornais da altura, a “Sporting” chegou a noticiar que Manoel de Oliveira chegou a pensar fixar-se no Brasil para poder preparar com maior eficácia as suas prestações competitivas. Regressado a Portugal, e depois de terem visto o potencial quer do carro, quer de Eduardo Ferreirinha, este decidiu fazer a sua própria oficina, a Edfor – uma antepassada das atuais preparadoras – Manoel de Oliveira tenta ajudá-lo da melhor maneira que sabe: fazendo um filme sobre ela. O resultado foi o “Já Se Fazem Automóveis em Portugal”, estreado no mesmo ano de 1938, com o objetivo de atrair pilotos para que se construíssem mais chassis Edfor com o motor V8 da marca. Contudo, apesar do trabalho de ambos, Ferreirinha e Oliveira, não houve interessados e apenas quatro carros foram construídos. Desses quatro, um sobreviveu até aos nossos dias e está no Museu Automóvel do Caramulo. No ano seguinte, rebentou a II Guerra Mundial e apesar de Portugal se tiver mantido neutro no conflito, a escassez de bens, nomeadamente de gasolina, fez com que as provas automobilísticas tivessem de parar. Em 1940, Oliveira casa-se com a sua mulher e esta lhe pede para abandonar a competição, o que ele acede. “Realmente, já não me interessava andar a correr de automóvel. A minha esposa ficaria em cuidado, e não havia necessidade disso”, justificou Oliveira em entrevista à revista Pública em dezembro de 2008, altura do seu centenário. Entretanto, volta a dedicar-se à sua carreira no cinema, e realiza em 1942 a sua primeira longa-metragem, “Aniki-Bobó”, um filme sobre um grupo de crianças da sua Porto natal. Apesar de não ter sido um sucesso inicial, tornou-se depois um filme de culto. Após a II Guerra Mundial, Manoel de Oliveira tem uma segunda carreira, mais discreta, como piloto de ralis, que o prolonga até 1953. Aí, dedica-se ao negócio de lâmpadas da família, e poucos anos depois, recomeça a filmar, antes de no final dos anos 60 e inicio dos anos 70 se ter virado totalmente para a Sétima Arte, com o sucesso que tem agora. Continuou a guiar o seu automóvel particular até aos 97 anos, altura em que decidiu não mais renovar a carta de condução por “não ter mais pachorra para fazer testes psicotécnicos”, declarou numa entrevista à revista Visão. Sobre isso, o seu neto Ricardo Trêpa (ator de muitos dos filmes do seu avô) conta certo dia que iam atrasados a determinado evento e o avô "conduzia desenfreado pela cidade fora". Até que "depois de várias tropelias, parou num sinal vermelho", e um jovem, num carro ao lado, abriu a janela e perguntou-lhe: "Ouça lá, o senhor não acha que já tem idade para ter juízo?" Quando se comemorou o seu centenário, entre as várias iniciativas que se fizeram em seu tributo, a mais original foi a de fazer um livro sobre a sua carreira de piloto de automóveis. A iniciativa partiu de José Barros Rodrigues, um antigo jornalista, que em 2005 abordou Manoel de Oliveira para colaborar num livro sobre a sua carreira automobilística, algo que muitos já se tinham esquecido. O resultado final foi “Manoel de Oliveira, Piloto de Automóveis”, editado aquando do seu centenário, em dezembro de 2008. Algum tempo depois, em fevereiro de 2009, na apresentação do seu livro, na cidade do Porto, o autor comentou sobre as diferenças entre o seu tempo e a atualidade, bem como as suas preferências pessoais: “Hoje, os carros são muito mais evoluídos, inclusive para defesa do piloto. Mesmo assim, o brasileiro Ayrton Senna foi desta para melhor. Era um bom piloto, até já estive no seu túmulo, em São Paulo, e chamou-me a atenção a placa que lá tinha: 'Podem-me roubar tudo, menos o meu amor a Deus'. Mas, para mim, Juan Manuel Fangio ficará como o melhor de sempre. O Tazio Nuvolari também ganhou muitas corridas, só que o argentino ainda lhe era superior”. Como Niemeyer, Manoel de Oliveira tornou-se numa instituição mítica. Mas a sua faceta de piloto de automóveis é um aspecto menos conhecido que somente nos últimos anos é que começou a ser revelado. Um abraço do outro lado do Atlântico, Paulo A. Teixeira |